Tinha uma ambigüidade moral fantástica, mas em geral todos os santos têm.
Gore Vidal, Ao Vivo do Calvário
As costas doíam, e Norival levantou um pouco da cadeira. Precisava descansar. Já estava estudando há horas, e precisava de no mínimo mais algumas velas. Era um dilema: economizar preciosa energia elétrica ou forçar os olhos a ponto de conviver com uma enxaqueca constante. "Danem-se meus olhos", suspirou, "primeiro a Terra". Espreguiçou-se e libertou um bocejo.
Acendeu mais três velas. Ele mesmo as produzia, sempre reaproveitando a cera derretida. Novo, apenas o pavio - e já era quase um exagero. Sentou novamente na cadeira e se dedicou a afiar a grafite do pequeno toco de lápis. A maioria de seus conhecidos não entendia essas atitudes, o consideravam um ecologista radical e intolerante. Isto o era, e com orgulho. Mas o que eles não conseguiam enxergar era sua missão (que deveria ser a de todos): exterminar a espécie humana, para salvar o planeta. Já fundara diversas organizações para divulgar suas idéias, mas elas invariavelmente terminavam por falta de correligionários. "Poucos serão os escolhidos", lembrou.
Sofria por sua percepção avançada das coisas. Nem todos podiam entender idéias como esterilização em massa e eutanásia altruísta (que muitos confundiam com suicídio). Só ouviu gargalhadas quando tentou patrocínio para um serviço telefônico chamado Centro de Valorização da Terra, inspirado nos hipócritas CVVs, os Centros de Valorização da Vida. A proposta era simples: estimular a eutanásia altruísta e oferecer informações práticas ao voluntários. "Você quer criar uma hotline que ensina técnicas de suicídio?", era a pergunta que ouvira dezenas de vezes. Começava então a explicar todo o seu plano de sobrevivência da Terra, mas nunca conseguia chegar ao fim. Até preso foi. Tudo inútil.
Até agora. Desde que resolvera trabalhar sozinho em prol da causa, ria de si mesmo por ter tentado cooptar outros companheiros de espécie. O prazer que a pesquisa e as atividades solitárias lhe proporcionavam eram imensamente superiores a qualquer réstia de compreensão e solidariedade que poderia lhe ser oferecida por outro primata pelado. Chegara a um ponto onde tudo estava claro: os passos a tomar, o inimigo a combater, o final da história. Deleitava-se com sua onisciência. Em alguns momentos, entristeceu-se, por saber que a espécie humana poderia ter seguido outro caminho - se não fosse por Eles.
"Nada de sentimentalismo", repetiu em voz alta, enquanto lacrava um tubo de ensaio. Sabia de tudo: Eles já tinham tomado conta, ganho a batalha. Delenda est homo sapiens sapiens. Agora só havia uma maneira de rir por último, mas o preço a pagar era a extinção da raça. Nada muito grave, enfim. Olhou para a foto de Roberto Carlos, ao lado das gaiolas. Baixou os olhos.
Duas velas se apagaram ao mesmo tempo. Era o aniversário de vinte e três anos de Norival. Arrancou a foto da parede e desamassou as bordas. Graças a Roberto Carlos tinha se dado conta da Conspiração e assumido sua missão na Terra. Agora ela estava chegando ao ápice, e não havia mais um porquê para manter a foto ali, o sorriso do Rei lhe encarando, desafiador. Não precisava mais de um estímulo.
Rasgou a foto em pedacinhos, que foram depositados com cuidado na caixa de papel a ser reciclado.