Ítaca1 [sábado, 06/10/07]
Onde
o narrador se furta a relatar um incidente que consumiu páginas e mais
páginas em caligrafia apertada, mas oferece em troca duas anedotas e um
punhado de informações e curiosidades aleatórias.Hoje não choveu em Dublin. Nem ontem. Tampouco anteontem ou no dia anterior.
Encaro meus três guarda-chuvas com uma expressão que nem eu mesmo consigo decifrar.
***Quando
comecei a digitar, pretendia contar algo que me aconteceu hoje cedo ao
norte da Parnell Square, bem ao lado do Garden of Remembrance, quando
eu voltava de minha rápida visita ao número 7 da Eccles Street
2.
Fiquei tão desnorteado que só consegui pensar "a terrible beauty is
born". Naturalmente, logo em seguida me senti um imbecil por apelar
para Yeats no lugar mais óbvio para fazer uma coisa dessas.
Apertei
o passo e fiquei ainda mais zonzo ao aspirar o cheiro de peixe do dia
anterior na Moore Street. Resolvi me abrigar no ILAC Centre. Shoppings
são como aeroportos, iguais em qualquer lugar. Menos em Alta Floresta,
mas não quero divagar. Sentado num banco em frente a uma loja de
artigos esportivos
3, rabisquei onze páginas de
garranchos miúdos no meu bloquinho, tentando me acalmar, registrar a
experiência, as idéias e sensações. Não funcionou tão bem quanto eu
gostaria. Nunca funciona. É por isso que se insiste: pela esperança de
um dia conseguir. Estou falando de ficar calmo, claro. E mentindo um
pouco.
Tudo que escrevi seria um post, mas -
alas! -
não mais será. Resolvi que não seria possível deixar o incidente de
North Parnell Square de fora do meu livro dublinense. Mas nunca
revelarei o que aconteceu. Nunca. E por que simplesmente não fiquei de
boca fechada e contei tudo isso para deixar vocês curiosos?
Porque eu não valho uma vírgula, ora. Como todos os escritores. Aprendam e perdoem.
***É
praticamente impossível fazer o ouvido se acostumar ao inglês em
Dublin, especialmente quando você está baseado ao norte do Liffey.
Escuto no mínimo sete idiomas diferentes todos os dias, além do inglês
falado com os mais diferentes sotaques e níveis de proeficiência.
"Sorry?" é a palavra mais útil no meu vocabulário. Quase nunca
compreendo o que me é dito na primeira vez, quase nunca entendem de
primeira o que digo. Exceto quando falo com um dublinense, mas na parte
norte da área central de Dublin os dublinenses são tão raros quanto
leprechauns. E os que existem não são muito de conversa, exceto quando
resolvem gritar "are ye lookin at me or waiting on a feckin bus?"
olhando para o nariz de um albanês qualquer.
***Ontem
à noite, depois de jantar num restaurante coreano da pequena Chinatown
da Parnell Street, resolvi passar na deli da esquina com a O'Connell
4
para comprar uma gengibirra. Não eram nem dez e meia da noite e a rua
já estava completamente em chamas. Não sei bem de onde, mas os
dublinenses tinham surgido. Ainda em minoria, mas pelo menos estavam
lá. Nos trezentos metros que separavam o restaurante da esquina com a
O'Connell, precisei desviar de quatro bêbados semicomatosos na calçada.
Também pareciam dublinenses - certamente
northsiders - mas
também não estavam em muitas condições de conversar. O último deles até
tentava falar sozinho, mas tudo que conseguia era erguer um par de
dedos. "Per benedictionem!", pensei e não impedi que uma careta
surgisse no meu rosto, abortando o sorriso. Preciso controlar meu vício
em associações livres.
Eu e os bêbados éramos as únicas pessoas
sozinhas. Nos pubs, nas calçadas, em todos os lugares, só haviam
grupos. Estar sozinho nunca me incomodou em meus trinta e três anos de
vida, mas em Dublin pode ser um problema. Primeiro porque o sujeito
fica menos estimulado a ir aos pubs, locais eminentemente sociais.
Ninguém, exceto velhos alcoolistas irlandeses, vai sozinho a pubs para
ficar bebendo num canto. E mesmo esses últimos vão sempre ao mesmo pub
que freqüentam há setecentos e quinze anos e resmungam quando um
forasteiro entra pela porta. Estão sozinhos, mas acompanhados pelo
hábito, pelo ambiente. Em Dublin, beber sozinho é muito chato e chama
muita atenção, o que nos leva ao segundo problema.
Caminhar
sozinho à noite no centro de Dublin não é muito recomendável.
Especialmente depois que os pubs fecham. Ainda mais ao norte do Liffey.
Pior ainda se você for estrangeiro. Sei que espancamentos rituais sem
sentido algum são um esporte gaélico por excelência - Francis Begbie
que o diga - e prefiro manter essa informação no meu cérebro, ao invés
de compartilhá-la com meus ossos.
Por isso peguei um táxi quando
voltei à noite de Temple Bar, o "distrito boêmio" (guias de viagem) ou
"pubbing center ao ar livre para turistas" (Daniel Pellizzari). Mais
fake que Temple Bar, só sushi com cream cheese. E, por ora, isso é tudo
que tenho a dizer sobre o local. Voltarei, lógico, porque sou um tanto
masoquista e ainda tenho coisas a explorar por lá. Penso em escrever um
guia sobre observação de ingleses embriagados escorregando em poças de
vômito.
Mas enfim, não esmoreço. Começo aos poucos a desbravar a
inner city e ainda terei sucesso na busca d'O Verdadeiro Pub. Serei barrado na entrada, lógico. É o correto.
Mas eu ia falar da gengibirra.
***Entrei na deli e peguei minha gengibirra (
with fiery hot Jamaican root ginger). Quando fui pagar, o caixa oriental disparou, meio rindo:
- Eu sou coreano. Ele - apontando para o outro caixa oriental - é chinês. Consegue ver a diferença?
Oh. Interação. Sensacional.
- Olha - comecei, mas fui interrompido por um sotaque meio impertinente às minhas costas.
-
De onde você acha que eu sou? - perguntou um magrelo com gel no cabelo
e abrigo esportivo branco e vermelho. Pelas cores, eu chutaria "inglês".
- Irlandês - tentou o coreano, me decepcionando. Esse aí não deve jogar Starcraft.
-
Não, sou inglês - era fácil, poxa. Então o inglês puxou pelo braço uma
garota pequenina e bem-vestida que por algum motivo insondável parecia
estar com ele. - E ela?
- Inglesa? - o raciocínio do coreano era linear demais. Sem dúvida não joga Starcraft. Abominei.
- Não, francesa.
- E eu? - perguntei, num raro momento "também quero brincar".
- Russo? - chutou o coreano, após me olhar de cima a baixo.
Controlei o risinho de satisfação.
- Na verdade eu sou coreano - respondi, estendendo a garrafa de gengibirra e 1,40 euro em moedas.
Só a francesa riu.
***Segui
em frente pela East Parnell Square e quando estava perto de virar à
direita em Gardiner Row, que em cinquenta metros vira Great Denmark
Street, que na metade de sua extensão - esse tipo de coisa é normal em
Dublin - muda mais uma vez de nome e vira a "minha" rua, Gardiner
Place, enxerguei um negócio esquisito. Um mar de pessoas virava a
esquina, jorrando para cima de mim.
Entrei na Great Denmark
5
e precisei sair da calçada. Era muita gente, muitas línguas. Às 23h, o
que em Dublin equivale a umas 3h da manhã no Brasil. Tentei seguir em
frente, mas para cada passo que avançava, recuava uns três. Acabei me
rendendo às evidências e fui para o meio da rua, mas mesmo assim
continuava esbarrando em pessoas. Já mencionei que era muita gente? Era
muita gente.
Ser a única pessoa caminhando no sentido oposto
daquela massa quase compacta de criaturas tinha um quê de humor. Era
quase pastelão. Por outro lado, era também uma metáfora - óbvia,
heavy-handed e meio pedestre,
but still - do tema central do meu livro dublinense. Fiquei muito satisfeito com aquilo tudo
6 e segui meu caminho, segurando a gengibirra.
Depois de uns bons quatro minutos e meio
7 cheguei na Lyndon, minha base em Dublin. Passei pela porta amarela e perguntei ao
duty manager noturno, que é polonês como toda a equipe que cuida do lugar:
- Teve algum show aqui por perto, né?
Esse
duty manager
é o meu polonês-do-Lyndon favorito. Ele parece sempre muito animado com
o que faz e ri bastante. Mesmo. Usa risadinhas curtas e graves à guisa
de pontuação até para repetir o número do meu quarto quando me entrega
a chave. E sempre termina qualquer frase com
thank you. Gente boa.
- Ah (haha) sim (haha) sim (haha) The Police (haha) acho (haha) obrigado (haha)
Claro.
Lembrei que existe um estádio ali por perto. Dezenas de milhares de fãs
suados do Police escoando por Gardiner Place. Em sentido oposto, um
míope e sua gengibirra. Quase um filme épico.
Aproveitei para perguntar ao
duty manager
quando meu guarda-roupa seria consertado, porque eu continuava sem ter
como pendurar os cabides. Quando me dei conta, as palavras
my closet is still missing a pole8
já tinham deixado minha boca. Deus meu do céu. Jesus, Maria, José e o
bondoso burrico que os salvou de Herodes. Meu cérebro virou mingau de
aveia, esmigalhado pelo peso de dezenas de associações livres.
Mas o polonês
9 apenas riu. E riu de novo. E disse:
- Ah yeah (haha) yeah (haha) yeah (haha) I'll fix it tomorrow (haha) thank you (haha)
Hm.
Ih, rapais. Por via das dúvidas, amanhã vou pedir pra trocar de quarto.
***Epílogo cantante:
logo que entrei no quarto 16 senti vontade de voltar pra rua, me postar
de frente para o dilúvio humano e berrar coisas como DE POLIS DEY CAN
BITE DE BACK OF ME BOLLIX! e FECKIN STING IZA DONKEYS TEZTICLES!, tudo
intercalado com gritos de JAYZIZ I'M CRAIC!
É o que faria um dos
personagens do meu livro. Eu já tinha cruzado por vários de seus
amigos, especialmente quando fiquei vagando pelas Liberties para testar
minha sorte, mas ontem encontrei o safado em pessoa na Ha'penny Bridge.
Quando, bem na minha frente, ele chutou o copo de papel cheio de moedas
de um junkie distraído e berrou JAYZIZ THAT WAS GRAND!, pensei "olá".
***Só para constar: recuperei minha mochila das entranhas dos armazéns da Aer Lingus.
Yay for clothes.
******1
Aqui haveria uma nota de rodapé muito longa, explicando algumas
particularidades de Dublin - especialmente a divisão norte/sul - e
apresentando a região em que estou baseado. Teria até um pouco de
História e umas fotos, vejam só como sou didático. Mas olha, esse post
já está longo além da conta. Admitam. Fica para o próximo, prometo.
Essa decisão administrativa destitui o título "Ítaca" de qualquer
sentido, mas quem está interessado em coerência?
2 Como ninguém é obrigado a saber: 7 Eccles Street é o endereço da casa de Leopold e Molly Bloom em
Ulysses.
Fica aqui pertinho. Existia realmente uma casa no local, mas foi
demolida nos anos 1990 para a construção de uma nova ala do Mater
Hospital. Tudo bem, botaram uma plaquinha na fachada. Ficou assim, ó:
3
Na vitrine, uniformes da seleção irlandesa de rúgbi em oferta. Quase
comprei um. Os garotos acabam de fazer muito feio na Copa do Mundo,
mais ou menos como a França na Copa de 2002. Comoção nacional, pelo
menos dentro dos pubs. Dos pubs que têm irlandeses dentro, claro.
Tirando um ou outro, não existem na área central de Dublin, seja ao sul
ou ao norte do Liffey. Ainda estou aprendendo a me orientar pelos
subúrbios sem me arriscar a ter a cabeça decepada.
4
Em tese, a avenida mais larga da Europa. Na prática, tem no máximo um
terço da largura da Nueve de Julio, em Buenos Aires. Ah, claro, Buenos
Aires fica na América do Sul. Perdão pelo lapso argentinista. Mas
enfim, parece que a tendência medieval a abrir ruelas estreitas deixou
marcas no psiquismo local, a ponto de distorcer o conceito de largura.
De qualquer modo, são seiscentos metros interessantes e muito
movimentados. É na Lower O'Connell que fica o General Post Office, onde
o pessoal do Levante da Páscoa se abrigou em 1916 enquanto a rua era
esmurrugada por bombas inglesas. Dá pra ver as marcas na fachada, é
bonito.
5 E, como sempre, olhei pela janela do
prédio da esquina e enxerguei o mesmo monitor, com a mesma tela azul de
erro do Windows. Vejo isso todos os dias, desde que cheguei. Não
importa a hora: o monitor está sempre ligado, sempre na tela azul da
morte. Preciso tirar uma foto, mas sempre esqueço. Fico distraído
imaginando coisas como "bah, aposto que a pessoa que mora aí morreu há
uma semana engasgada com um
scone na hora do chá e ninguém
percebeu, já deve estar cheirando mal, será que consigo sentir se
chegar mais perto da janela? Não, peraí, li no Irish Independent aquela
notícia sobre a mulher que chegou do pub e se estatelou no chão da
sala, onde morreu afogada em vômito, parece que isso acontece bastante
por aqui, deve ter sido isso" etc.
6 Meu
primeiro sábado em Dublin ficou marcado como o dia em que comecei a
encontrar pela rua os personagens que estava inventando. Dois no mesmo
dia, e dos principais. E depois ainda me acontece isso.
Spooky shite.
7
Eu mediria a distância exata se pudesse contar com o Google Earth. Como
não é o caso, vocês terão de se contentar com minha noção de passagem
de tempo. Ao tentarem decidir se sou confiável ou não, lembrem sempre
que sou canhoto.
8 É bobo, eu sei, mas estando
em Dublin não podia ser diferente. Joyce não foi um mongo-alegre
obcecado por rimas e trocadilhos à toa. Sua estátua na esquina da
O'Connell com a Henry Street, a propósito, é mais conhecida como "the
prick with the stick". Se você marcar um encontro na estátua do Joyce,
ninguém vai entender. É "the prick with the stick" e ponto final,
are ye lookin for a claim?
No meu livro vai aparecer como "o mala de bengala", se eu não encontrar
tradução melhor. E tem mais: a excelente estátua do Wilde em Merrion
Square é "the fag on the crag" (no livro, "a bichona na pedrona"). Anna
Livia não existe mais, deu lugar aos 120 metros de altura da Spire -
também conhecida como "monumento aos junkies dublinenses". Mas quando
ainda servia como ponto de referência, chamava-se "the floosie on the
jacuzzi". Compro bagels sem glúten no Itsabagel do Epicurian Food Hall,
quase na frente das "hags with the bags". Enfim, todas as estátuas de
Dublin têm um apelido infame. Todas. Isso explica
Finnegans Wake. Explica muitas coisas. Coisas demais.
9 Note to self: preciso começar a perguntar o nome das pessoas.