PACTO GNÓSTICO
NOX | http://www.psynet.net/nox
|
A História
da Bruxaria
(de
acordo com a Tradição)
© 1993,
k-Ouranos 333
Olhem
para a pedra da qual fomos tirados
e o buraco
de onde fomos escavados
Margaret
Murray
As Raízes
da Antiga Religião
Quando iniciamos o estudo de algo que
nos é novo, a primeira pergunta que nos vêm à mente
é: “de onde surgiu?”. Portanto, nada mais correto do que usar a
história da Arte como ponto de partida. De onde veio a Wicca? Como
tornou-se o que é hoje? O que ela é hoje?
Wicca é uma palavra do inglês
arcaico que quer dizer “bruxo” (plural wicce). Há quem diga que
seu significado é “sábio”, mas isso não corresponde
à verdade. A palavra tem sua origem na raiz indo-européia
‘wikk-’, significando ‘magia’, ‘feitiçaria’.
O nome Wicca é o mais usado para
denominar nossa religião. Ela também é conhecida como
Bruxaria, Feitiçaria, Antiga Religião e Arte dos Sábios,
ou, simplesmente, A Arte.
As origens da Bruxaria remontam à
aurora da humanidade. Nossas crenças começaram a tomar forma
no Paleolítico, há aproximadamente vinte e cinco mil anos.
Neste período, o ser humano era nômade, e suas principais
fontes de subsistência eram a caça e a coleta. Tudo era misterioso
para o homem e a mulher do paleolítico: o trovão, o sol,
a escuridão... Para eles, o mundo era um lugar perigoso, cheio de
forças que deveriam ser temidas, respeitadas e reverenciadas. Com
o tempo, a idéia das forças foi evoluindo para a idéia
de Deuses. Um dos primeiros e, seguramente, o mais importante Deus primitivo
a surgir foi o Deus de Chifres.
Para que o clã nômade sobrevivesse,
uma das principais atividades era a caça: dela provinham carne para
alimentar-se, peles para vestir-se, ossos e chifres para fazer instrumentos.
Os animais considerados mais valiosos, cujo abate cobria de honras aquele
que o realizava, eram animais que possuíam chifres, como cervos
e bisões. Assim, tomou forma na mente do ser humano primitivo a
idéia de um Deus das Caçadas, dotado de chifres, símbolo
de seu poder. Alguns membros do clã iniciaram a prática de
atividades de caráter mágico-religioso, compostos por um
elemento religioso (esboços de rituais e mitos dedicados à
adoração do Deus de Chifres, forças da natureza e
espíritos dos antepassados) e por um elemento mágico (práticas
que tentavam atrair a benevolência destas divindades e espíritos,
a fim de manipulá-la para interesses práticos do clã).
Neste momento estava se delineando algo que se assemelhava muito a grosso
modo com uma classe sacerdotal.
Estes ‘sacerdotes’ realizavam ritos
do que hoje é denominado magia simpática, ou seja, práticas
baseada na atração dos semelhantes. Pintavam-se cenas de
membros do clã vencendo e abatendo animais cobiçados, para
garantir o sucesso da próxima caçada. Miniaturas destes mesmos
animais eram confeccionadas, em osso, chifre ou barro, e então simulava-se
sua caça e abate. Estes ritos eram geralmente dirigidos por um destes
‘sacerdotes’, geralmente usando a primeira de todas as túnicas:
peles de animais e uma máscara dotada de chifres. Em Trois Frères,
na França, existe uma pintura de doze mil anos, conhecida como “Le
Sorcière” (“O Feiticeiro”). É a figura de um homem vestido
de peles, com cauda e chifres de cervo. À sua volta, paredes cobertas
por pinturas de animais em caçadas. A seus pés, uma saliência
na rocha, constituindo um altar.
Mas as caçadas não eram
a única coisa que faziam o clã sobreviver. Havia um Mistério:
o da fertilidade. O clã precisava continuar. De tempos em tempos,
a barriga das mulheres crescia, e, ao fim de algumas luas, delas surgia
um novo membro da tribo, pequeno, mas que crescia com o passar do tempo.
Os animais também tinham filhotes, e isso garantia o alimento das
futuras gerações. A chave de todo esse Mistério era
a mulher, aquele enigmático ser que, se já não bastasse
ser a única responsável pela continuação da
tribo (ainda não havia a consciência da participação
do homem na reprodução), também alimentava as crianças
com leite de seu próprio corpo. Além disso, aquela criatura
mágica vertia sangue de dentro de seu corpo em algumas ocasiões,
mas mesmo assim não morria. Todas estas constatações
deram origem ao surgimento de uma Deusa da Fertilidade, uma Grande Mãe.
Figuras pré-históricas
desta Deusa são incontáveis. Uma das mais famosas é
a Vênus de Willendorf: seu corpo parece uma grande massa disforme
da qual se destacam um gigantesco par de seios e uma proeminente barriga
grávida. Ela não tem pés nem braços, e seu
rosto está coberto. Estas características são comuns
a várias outras ‘Vênus’ pré-históricas, e se
devem à ênfase que o ser humano primitivo dava ao aspecto
de fertilidade da mulher . A Deusa era a Grande Mãe Natureza, fonte
de toda a vida.
Com o tempo, os homens foram se conscientizando
de seu papel na reprodução, e o aspecto de fertilizador passou
a ser mais um dos atributos do Deus de Chifres. Ele tornou-se filho da
Deusa, pois dela era nascido, e também seu amante, pois a fertilizava
para que um novo ser surgisse. A partir desta concepção,
novos ritos foram adicionados às práticas mágico-religiosas,
onde esculpiam-se ou pintavam-se animais ou humanos copulando, e todo o
clã entregava-se ao ato sexual, já tendo recebido a graça
dos Deuses.
No Neolítico, o ser humano desenvolveu
a agricultura, e começou a formar aldeias e povoados. Com a descoberta
das técnicas de plantio, a Deusa assumiu maior importância,
passando a acumular também o aspecto de guardiã da colheita.
O Deus de Chifres começou a ganhar uma nova face, a de alegre Deus
das Florestas, protetor dos animais e criaturas dos bosques. Quando o homem
adquiriu a noção das estações do ano, esboçaram-se
as primeiras idéias sobre a Roda do Ano. Havia um período
quente e fértil, onde realizavam-se as colheitas e a natureza mostrava
todo seu esplendor. Neste período, reinava a Deusa em seu aspecto
de Mãe Fértil. Mas havia outro período, frio e escuro,
quando as folhas das árvores secavam e caíam e tudo parecia
estar morto. O povo voltava a depender da caça para sobreviver,
pois não podia viver só dos alimentos armazenados. Quem regia
este período era o Deus das Caçadas, que também adquiria
seu novo aspecto de Sombrio Senhor da Morte (nesta época nasceram
também os primeiros conceitos sobre a vida após a morte).
Surgiram então os primeiros mitos sobre a descida da Deusa ao mundo
subterrâneo, que, séculos mais tarde, tomaria forma definitiva
na Grécia, com o mito de Perséfone, e na Mesopotâmia,
com a lenda de Ishtar.
As culturas desenvolveram-se com o passar
dos séculos, e novos aspectos dos Deuses foram descobertos. Cultos
religiosos se estruturaram, centrados nos ciclos de nascimento, morte e
renascimento da natureza. O tempo da plantação e o tempo
da colheita eram muito importantes, marcados com festividades, assim como
o período do recolhimento do gado e a época de sua liberação
ao pasto. Nestas datas, juntamente com as de mudanças de estação,
realizavam-se encenações de mitos nos quais um Deus Velho
morria para um Deus Jovem nascer, representando a morte da antiga colheita
e o nascimento de uma nova.
Estes cultos possibilitaram o refinamento
da classe sacerdotal, que chegou ao requinte de gerar representantes como
os druidas, sacerdotes celtas que encantaram os gregos e romanos com sua
profunda filosofia e integração com a natureza. Sua erudição
era admirável, e acumulavam funções como a de legisladores,
médicos, poetas, bardos e guardiões da tradição
oral. Na Grécia Antiga, floresceram os Cultos de Mistério,
dos quais deve destacar-se os Ritos de Elêusis e os Mistérios
Órficos. Também foram de grande importância os cultos
dionisíacos.
Deve-se ter em mente que estas são
linhas gerais do início da bruxaria, que confunde-se com o surgimento
das primeiras manifestações religiosas humanas. O que relatei
acima aconteceu, em épocas diferentes, nos mais variados lugares.
É verdade que nem tudo ocorreu exatamente da mesma maneira em todos
os lugares: enquanto no Crescente Fértil da Mesopotâmia nasciam
avançadas civilizações, na Europa ainda vivia-se de
caça e coleta. Mas o que impressiona e é importante não
são as diferenças, e sim as semelhanças dos primeiros
esboços de religião. Meu objetivo, com a pequena exposição
acima, foi dar ao estudante noções de como foi o surgimento
da idéia dos Deuses e seu desenvolvimento. Para aqueles que desejarem
um estudo mais detalhado, há uma lista de leitura recomendada no
fim dos polígrafos.
O Surgimento
do Cristianismo
Ao contrário do que se pensa,
o cristianismo não foi imediatamente adotado pelo povo europeu ao
ser declarado religião oficial do Império Romano. Esta conversão
dos Romanos ao catolicismo teve motivos políticos, e não
teve grande penetração fora dos centros urbanos. A grande
massa da população permaneceu fiel a seus deuses antigos.
Os cultos antigos, então, receberam
a denominação pejorativa de “pagãos” (“pagani”, plural
de paganu, ‘ morador do campo’), por ter como foco de resistência
à nova religião o povo dos campos, longe das cidades e das
zonas de comércio e ensino. Os missionários cristãos,
com o tempo, passaram a ter mais aceitação nas cidades, mas
continuavam sendo repelidos no campo, nas montanhas e nas regiões
distantes, verdadeiros enclaves da Antiga Religião.
Houve ainda uma tentativa de reativar
o paganismo e o culto aos Deuses antigos como religião oficial do
Império Romano. Esta última esperança deveu-se ao
Imperador Juliano (conhecido como “O Apóstata”), que reinou no século
IV EC. Mas, como sabemos, essa tentativa não foi frutífera,
derrubada pela própria conjuntura da época, onde já
se pressentia o poder de manipulação, domínio e intriga
do cristianismo, evidenciado nos séculos seguintes.
Um dos ardis utilizados pelos cristãos
era o de apropriar-se de festividades pagãs como comemorações
religiosas de sua própria religião. Assim, por exemplo, o
festival do solstício de inverno, onde se comemorava o nascimento
do Deus-Sol, transformou-se no Natal cristão. Também o festival
de Samhain, comemorado em intenção dos mortos, recebeu o
nome de Dia de Todos os Santos, logo seguido pelo dia de Finados. A despeito
destas tentativas, as tradições pagãs continuaram
mantendo sua força.
A partir de um decreto do papa Gregório,
os cristãos também se apossaram dos locais sagrados da Antiga
Religião e, derrubando os templos ali existentes, erigiram suas
igrejas. Os Deuses de cada santuário foram transformados em santos
e santas (um exemplo é Santa Brígida, da Irlanda, na verdade
a Deusa Bhríd, protetora do fogo e dos partos). Quando os cristãos
deram-se conta da importância da Deusa-Mãe para as pessoas,
aumentaram a proeminência da Virgem Maria no culto cristão.
Mitos e práticas pagãs foram, sistematicamente, absorvidas,
distorcidas e transformadas em ritos cristãos. Esculturas de temas
pagãos foram incluídos em igrejas e capelas . O maior exemplo
de sincretismo entre costumes pagãos e cristãos é
o cristianismo irlandês, que ainda hoje conserva hábitos célticos
mesclados a liturgias cristãs. Os padres tinham a seu favor o tempo,
o poder e a força. Os pagãos tinham que lutar sozinhos contra
a profanação de seus templos, crenças e costumes.
Desta maneira, o povo simples dos campos foi acostumando-se à nova
religião, e, gradualmente, foi sendo convertido.
Mas os sacerdotes restantes da Antiga
Religião não se renderam à nova ordem. Juntamente
com pessoas ainda fiéis às antigas crenças, mantiveram
o culto ao Deus de Chifres e à Deusa Mãe. As crenças
pagãs, enfatizando a adoração aos Deuses e a realização
dos festivais de fertilidade, foram amalgamando-se à magia popular,
criando a Bruxaria Européia. A magia popular consistia em um conjunto
de feitiços feitos com o uso de ervas, bonecos e diversos outros
meios. Estes feitiços tinham como objetivo a cura, a boa sorte,
atrair amores, e fins menos nobres,como a morte de algum inimigo. São
práticas desenvolvidas a partir do que restara da magia simpática
pré-histórica, unidas ao conhecimento xamânico dos
povos bárbaros. Os teólogos cristãos passaram então
a sustentar que a Bruxaria não existia. Assim, pretendiam terminar
com a credibilidade dos bruxos e anular sua influência. Foi um período
de relativa paz para a Arte.
Mas logo os cristãos perceberam
que seus esforços para exterminar completamente o paganismo não
haviam dado resultado. Fizeram então mais uma tentativa: transformaram
o Deus de Chifres na personificação do Mal, do Antideus,
do Inimigo. A natureza dos Deuses pagãos é completamente
diferente da do todo-poderoso “senhor de bondade” dos cristãos.
Nossos Deuses são quase “humanos”, pois têm características
tanto ‘boas’ quanto ‘más’. A teologia cristã já pressupunha
a existência de um antagonista a seu Jeová (o ‘Satan’ hebraico
do Antigo Testamento e o ‘diabolos’ do Novo): um Inimigo. Ele ainda não
possuía forma definida e, quando era representado, o era em forma
de serpente, como a que persuadiu Adão a comer a fruta da Árvore
da Sabedoria. Dando a seu Satã a forma do Deus de Chifres (notadamente
de deuses agropastoris como Pã e Sileno, dotados de cascos de bode
e pequenos cornos), os cristãos conseguiram iniciar um clima de
terror e medo em relação aos praticantes da Antiga Religião,
o que os forçou a praticarem seus ritos em segredo. Mas a era mais
triste da Arte ainda estava por vir.
A Era das
Fogueiras
A situação da Igreja até
o século XIII era caótica. Facções adversárias
lutavam entre si, cada uma degladiando-se em favor de um dogma. Nos numerosos
concílios realizados, ora uma das facções impunham
sua visão, ora outra. Isso favorecia um desmoralizante ‘entra-e-sai’
de dogmas, o que desacreditava a Igreja. Algumas destas facções
também criticavam a corrupção e o jogo de poder dentro
da classe sacerdotal, e levantavam dúvidas sobre o poder espiritual
do papado. Foi então criado um instrumento de repressão:
o Tribunal de Santa Inquisição. Consistia em um corpo investigatório
ignorante, brutal e preconceituoso, dirigido pela ordem dos Dominicanos.
Sua função primordial era a de acabar com as facções
que se opunham à Igreja (denominadas ‘heréticas’), através
do extermínio sistemático de seus membros. Exemplos destas
facções ‘heréticas’ eram os cátaros, os gnósticos
e os templários.
Com o tempo, os cristãos perceberam
outro uso para seu Tribunal. Ainda persistiam cultos aos Deuses Antigos,
e, graças à transformação do Deus de Chifres
no Demônio Cristãos, eram acusados de delitos absurdos, como
o canibalismo, a destruição de lavouras (acusar de tal crime
uma Religião dedicada à manutenção da fertilidade
das colheitas é, no mínimo, ridículo) e muitos outros.
Foi então proclamada, em 1484, a Bula contra os Bruxos, pelo Papa
Inocêncio VIII. Neste documento, ele relacionava os crimes atribuídos
aos bruxos e dava plenos poderes à Inquisição para
prender, torturar e punir todos aqueles que fossem suspeitos do ‘crime
de feitiçaria’. Em 1486 foi publicado o Malleus Malleficarum (‘Martelo
dos Feiticeiros’), escrito pelos dominicanos Kramer e Sprenger. O livro,
absurdo e misógino, era um manual de reconhecimento e caça
aos bruxos, e, principalmente, às bruxas (o livro trazia afirmações
surpreendentes, como : “quando uma mulher pensa sozinha, pensa em malefícios”).
A partir daí, a Igreja abandonou completamente a postura de ignorar
a Bruxaria: pelo contrário, não acreditar na sua existência
era considerada a maior das heresias. Iniciou-se então um período
de duzentos anos de terror, conhecido entre os bruxos como “Era das Fogueiras”.
Mas os bruxos (e também os hereges e inocentes: doentes mentais,
homossexuais, pessoas invejadas por poderosos, mulheres velhas e/ou solitárias)
não pereciam só em fogueiras: eram também enforcados
e esmagados sob pedras. Isso quando não pereciam nas torturas, as
quais são tão cruéis e sádicas que não
merecem nem ser mencionadas.
A Inquisição tornou-se
uma válvula de escape para as neuroses da época: em época
de forte repressão sexual, condenavam-se mulheres jovens, que eram
despidas em frente a um grupo de ‘investigadores’, tinham todo seu corpo
revistado diversas vezes, à procura de uma suposta ‘marca do diabo’,
e, por fim, eram açoitadas, marcadas a ferro e violentadas. Terminavam
condenadas e executadas como bruxas. Seu crime: serem mulheres jovens,
belas e invejadas. Anciãs que moravam sozinhas, geralmente em companhia
de alguns animais, como gatos (daí a lenda da ligação
dos gatos com as bruxas), eram alvo de desconfiança e logo declaradas
‘feiticeiras’, e, assim, assassinadas. A maioria das vítimas dos
tribunais de Inquisição não eram verdadeiros praticantes
da Arte, mas muitos bruxos pereceram na mão dos cristãos.
Aproximadamente nove milhões de crimes como este foram cometidos
durante a Inquisição, ironicamente em nome de uma religião
que se dizia ‘de amor’. Nunca uma religião demonstrou tanta necessidade
de exterminar seus antagonistas como o cristianismo.
A perseguição aos bruxos
não resumiu-se apenas ao países católicos: espalhou-se
pela Europa protestante. Os protestantes não se guiavam pelo Malleus
Malleficarum, mas davam razão à sua paranóia através
do uso de uma citação do Antigo Testamento: “não deixarás
que nenhum bruxo viva”.
Na Era das Fogueiras, os praticantes
da Antiga Religião adotaram o único comportamento que lhes
possibilitaria a sobrevivência: “foram para o subterrâneo”,
ou seja, mantiveram o máximo de discrição e segredo
possível. A sabedoria pagã só era passada por tradição
oral, e somente entre membros da mesma família ou vizinhos da mesma
aldeia. Como técnica de proteção, os próprios
bruxos ajudaram a desacreditar sua imagem, sustentando que a Bruxaria não
passava de lenda, ou disseminando idéias de bruxos como figuras
cômicas e caricatas, dignas de pena e riso.
Por volta do final do século
XVII, a perseguição aos bruxos foi diminuindo gradativamente,
estando virtualmente extinta no século XVIII. A Bruxaria parecia,
finalmente, ter morrido. Mas os grupos de bruxos (“covens”) resistiam,
escondidos nas sombras. Algo que surgiu nos primórdios da humanidade
não morreria assim tão facilmente.
O Renascer
da Bruxaria
A partir da metade do século
XIX, a Bruxaria tornou-se novamente objeto de discussão, graças
ao renascer do interesse em mitologia, folclore e magia. Em 1862, Jules
Michelet lançou sua obra “A Feiticeira” , na qual falou sobre a
sobrevivência dos cultos pagãos nas Idades Média e
Moderna e sobre o surgimento paralelo do satanismo. Apesar de importante,
as principais intenções de seu livro eram políticas:
pretendia provar que a Bruxaria era um culto surgido nas camadas inferiores
da sociedade em protesto à repressão da classe dominante.
Isso pode ser verdadeiro para o satanismo, mas não corresponde à
realidade quando se trata de Bruxaria.
Mas isso não diminui a importância
de seu livro: sua tese da sobrevivência dos cultos pagãos
influenciou o trabalho de vários antropólogos e folcloristas
do final do século XIX e do início do século XX. Um
deles foi o norte-americano Charles Leland, um folclorista conhecido na
época por suas pesquisas sobre cultura cigana. Em 1899, Leland lançou
um livro intitulado “Aradia, ou o Evangelho das Bruxas”. Foi a primeira
obra de grande importância para o renascimento da Bruxaria no século
XX. Neste livro, Leland registrava as crenças reunidas por uma bruxa
toscana chamada Maddalena, que ele conhecera em uma viagem pela Itália
no ano de 1866. O livro fala da vecchia religione praticada naquela região:
o culto à Deusa Aradia, filha de Diana com seu irmão Lúcifer.
Aradia foi la prima strega (‘a primeira bruxa’), enviada à Terra
por sua mãe para ensinar as artes da feitiçaria aos humanos.
A idoneidade do livro é contestada atualmente por alguns historiadores
da feitiçaria, que argumentam que Leland dirigiu sua pesquisa para
enquadrar-se em suas concepções e nas idéias de Michelet.
Outros dizem ainda que Maddalena traiu a boa fé do folclorista.
O fato é que nada disto tira o mérito do livro, um clássico
da Bruxaria moderna.
A década de 20 produziu dois
importantes livros para a Bruxaria moderna: um deles foi “O Ramo de Ouro”
(‘The Golden Bough’), gigantesca obra do antropólogo James Frazer,
versando sobre rituais de fertilidade. As idéias que expôs
em sua obra, juntamente com o conhecimento passado por Leland em ‘Aradia’
levaram a antropóloga Margaret Murray a lançar seu importante
livro “O Culto de Bruxaria na Europa Ocidental” (‘The Witch-Cult in Western
Europe’), em 1921. Nele Murray sustentava que a Bruxaria era uma antiquíssima
religião organizada, presente em toda a Europa, baseada no culto
a um deus chifrudo da fertilidade, que ela denominou de Dianus (ela falou
mais sobre ele em seu livro ‘The God of the Witches’). De acordo com ela,
essa religião havia sobrevivido à perseguição
e continuava com suas práticas, de maneira oculta. Muitas críticas
já foram feitas à Murray, e a maioria se baseou na fraqueza
de alguns de seus argumentos para defender a suposta ‘organização’
dessa religião. Hoje sabemos que ela não era tão organizada
nem praticada em tantos lugares quanto Murray sustentava, mas indubitavelmente
existia um culto pagão, praticado de formas diferentes em lugares
diferentes, que sobreviveu à perseguição.
Em 1948 Robert Graves escreveu sua excelente
obra ‘A Deusa Branca’ (‘The White Goddess’), no qual concordava com Murray
quanto à existência de um culto pagão disseminado pela
Europa, mas apoiava a tese de que sua divindade mais importante era uma
Deusa-Mãe, e não o Deus de Chifres. Três anos depois,
em 1951, caíram as últimas leis anti-feitiçaria da
Inglaterra. A porta estava aberta para os bruxos.
Surge então Gerald Gardner, o
mais importante personagem do renascimento da Bruxaria como religião.
Gardner era um folclorista inglês, amigo pessoal do grande mago Aleister
Crowley. Admirador de Frazer e Murray, realizava profundas pesquisas sobre
os cultos de fertilidade pré- cristãos e sua sobrevivência.
No decorrer destas pesquisas, em 1939, conheceu um grupo de pessoas que
mais tarde descobriu fazerem parte de um Coven secreto (como o eram todos,
na época). Gardner ficou fascinado: a existência destes bruxos
confirmava as teses de Margaret Murray. Estabeleceu uma relação
de amizade profunda com os membros deste Coven (denominado Coven de New
Forest), e acabou por receber Iniciação.
O Coven de New Forest, dirigido por
uma bruxa conhecida por ‘Old Dorothy’, era representante de uma tradição
que havia sobrevivido às perseguições. Há quem
insinue que Gardner inventou o Coven para dar bases à seu trabalho
posterior, e que Old Dorothy nem ao menos existiu. Essas declarações
foram refutadas com alegadas evidências históricas por Doreen
Valiente, no ensaio “Em Busca de Old Dorothy”, publicado no livro “The
Witches’ Way” (‘O Caminho dos Bruxos’), do casal Janet e Stewart Farrar.
Com o passar do tempo, Gardner preocupou-se com o futuro da Tradição,
pois todos os membros do Coven eram idosos, e não havia previsão
de aceitar novos iniciados. Ele não aceitou esse destino, e pediu
permissão para publicar algumas práticas da religião.
Relutantes, os Sábios do Coven negaram.
Mesmo assim, Gardner publicou, em 1948,
“High Magic’s Aid”, um romance no qual descrevia, sutilmente, alguns rituais
da Arte. A publicação do livro causou polêmica entre
o Coven de New Forest, e Gardner quase foi banido. Mas, com a queda das
leis anti-feitiçaria, os Sábios do Coven reviram sua posição
e deram permissão a Gardner para afirmar que a Bruxaria estava viva,
desde que não revelasse nenhum segredo. Então, em 1954, Gerald
Gardner publicou o primeiro livro da Bruxaria Moderna: “Witchcraft Today”,
seguido de “The Meaning of Witchcraft” (1959). Neles, Gardner afirmava
estarem certas as teorias de Murray, pois ele mesmo era um bruxo iniciado.
Os livros falavam apenas superficialmente sobre a Tradição
que lhe havia sido confiada, concentrando-se mais no aspecto histórico
da religião.
Paralelamente à publicação
dos livros, Gardner saiu do Coven de New Forest e iniciou seu próprio
Coven, iniciando pessoas que lhe pareciam sinceras e dedicadas. A essas
pessoas, transmitia integralmente o conteúdo de um manuscrito, por
ele denominado de “Livro das Sombras”. Este livro continha integralmente
a Tradição do Coven de New Forest, mesclada a práticas
mágicas retiradas da Clavícula de Salomão e dos escritos
de Crowley. Seu conteúdo, copiado por todo iniciado, passou a ser
denominado de Tradição Gardneriana, a primeira Tradição
da Bruxaria Moderna.
O ‘Livro das Sombras’ Gardneriano teve
três versões, conhecidas pelas letras A, B e C. O texto que
é utilizado atualmente pelos Covens Gardnerianos é o C, escrito
por Gardner em conjunto com uma de suas iniciadas, Doreen Valiente, responsável
por grandes mudanças no texto original. Valiente ‘paganizou’ ao
máximo os ritos e textos, retirando qualquer influência de
magia judaico-cristã ou textos escritos por Crowley. Atualmente,
a Gardneriana é a mais sigilosa de todas as Tradições
modernas.
Gardner morreu em 1964, e o comando
de seus Covens foi passado à Monique Wilson, conhecida como Lady
Olwen. Na década de 60, surgiu outro personagem importante na história
moderna da Arte: Alex Sanders, que recebeu o título de “Rei dos
Bruxos”. Sanders era um grande interessado em bruxaria, que nunca havia
conseguido ingressar em um dos Covens Gardnerianos. De algum modo que até
hoje não está bem esclarecido, conseguiu tomar posse de um
‘Livro das Sombras’ Gardneriano. Uniu o conhecimento do livro (provavelmente
cópia do texto A) ao que afirmava ter sido transmitido por sua avó,
uma bruxa familiar. Sanders possuía um temperamento completamente
antagônico ao de Gardner. Era um especialista em marketing pessoal,
o que lhe deu extrema notoriedade. Milhares de pessoas foram iniciadas
em seus Covens, e ele aparecia em entrevistas em TV, rádio e jornais.
Era tão público que foi ameaçado de maldição
por bruxos mais tradicionais, temendo que ele revelasse algum grande segredo
da Arte. Mas isto nunca ocorreu: Sanders era um ‘show-man’, mas não
era burro.
A Tradição Alexandriana,
fundada por Alex Sanders, é muito semelhante à Gardneriana.
Sua principal diferença é a maior ênfase mágico-cabalística,
quase inexistente na Tradição de Gardner. Sanders morreu
em 1988, mas sua Tradição é uma das mais difundidas
no mundo. Existe também uma Tradição moderna denominada
Alexandriana-Gardneriana (Al-Gard), que tenta conciliar os ensinamentos
de ambas, com a inclusão de novos elementos, em sua maioria de origem
céltica. Os maiores representantes públicos atuais da Al-Gard
são Janet e Stewart Farrar, da Irlanda.
Nos EUA, o primeiro bruxo a se manifestar
publicamente foi o anglo-gitano Raymond Buckland, iniciado por Gardner
e Lady Olwen. Considerado pelo próprio Gardner um de seus herdeiros,
Buckland migrou para os Estados Unidos logo após a morte do bruxo.
Lá, ganhou notoriedade por seus livros sobre Ocultismo e por ser
o fundador da Tradição Saxônica da Bruxaria, a Seax-Wica.
Nos Estados Unidos, com raras exceções, a Arte ganhou um
novo aspecto, inexistente na Bruxaria Européia: o aspecto político.
A Bruxaria uniu-se ao feminismo para
gerar uma nova forma da Religião. Surgiram então Covens denominados
“Diânicos” , formados só por bruxas. Algumas das representantes
da Bruxaria feminista americana são Starwahk, Zsuzsana Budapest
e Laurie Cabot. Com exceção da primeira, nenhuma delas é
levada muito a sério pelos bruxos tradicionalistas europeus, que
julgam-nas produtoras de distorções no verdadeiro espírito
da Arte.
RETORNAR AO ÍNDICE |
RETORNAR À PÁGINA PRINCIPAL
|