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    DANIEL PELLIZZARI
mojo333@terra.com.br

Ana

Quarta, 20 de março de 2002, 11h36



Certa noite a contorcionista do Circo Garcia não apareceu para o espetáculo. Ficou trancada em seu trailer, ouvindo vozes e passando muito mal, com pontadas na cabeça e tossindo sem parar. Continuou assim durante muito tempo, preocupando seu chefe Walter Garcia, o homem da cartola, e seu marido Geraldo, o atirador de facas. Quando completou duas semanas longe do picadeiro, a contorcionista do Circo Garcia espirrou com muita força e sentiu algo saindo de sua narina esquerda. Quando abriu os olhos (lembramos aqui que é impossível espirrar de olhos abertos) deu de cara com um pequeno homúnculo de aproximadamente quinze centímetros de altura, coberto de muco, que lhe sorria sentado no chão. No mesmo instante cessaram as vozes, as pontadas, a tosse e o furor uterino do qual ainda não tínhamos falado nem vamos falar, pois não tem o menor interesse para a vida de Eduardo, que é como o homúnculo foi batizado.

Para alguém que não nasceu, surgiu, Eduardo teve uma infância atribulada, apesar de já ter nascido adulto. Rumores sobre a história milagrosa de seu nascimento acompanhavam a trupe do Circo Garcia por onde quer que andassem, o que despertou a coceira da ganância em Walter Garcia e sua cartola. Eduardo, o filho da contorcionista, começou a ser exposto na tendinha de aberrações que costumava ser erguida ao lado do circo. Passava dias e noites sendo observado, o que muito lhe incomodava, principalmente quando alguém lhe atirava pipocas. Após alguns meses cansou deste tratamento e resolveu fugir. Vestiu uma espiga de milho com suas pequenas roupas, feitas com carinho pela Mulher Barbada, e escapuliu por baixo da lona. Anos depois aconteceu um incêndio no Circo Garcia e a contorcionista foi uma das vítimas fatais, mas isso não faz o mínimo sentido nem tem relação com Eduardo, que a esta altura estava vivendo contra a sua vontade em um laboratório muito asséptico.

O Dr. Krleza possuía uma interessante teoria interessante sobre a loucura, baseada em sua crença de que o ar estava cheio não apenas de bactérias, mas de pequenos homúnculos que poderiam ser aspirados e começar a viver dentro do crânio de pessoas normais, compartilhando seus pensamentos e assim causando delírios e outras afecções da mente. Eduardo era a prova empírica de que necessitava para sedimentar o fato da existência dos pequenos homúnculos. Mas, infelicidade profunda, eles nunca se conheceram e nem ao menos ouviram falar um do outro, provavelmente pelo fato do Dr. Krleza viver na Croácia e Eduardo no Brasil, mais precisamente em uma cidade que não tem importância para esta narrativa. O que nos importa é que depois de vagar pelo mundo algum tempo após sua fuga, Eduardo concluiu que as ruas eram perigosas demais e se deixou ser adotado por uma patologista solteirona viciada em trabalho e em óxido nitroso, que morava no laboratório e passava grande parte do seu dia rindo sem parar e utilizando os então dezoito centímetros de nosso homúnculo em certa atividade que não temos competência, desenvoltura ou desinibição para descrever em detalhes.

Tal período teve grande influência no mau humor apresentado por Eduardo ao completar vinte centímetros de altura, algumas semanas depois de abandonar suas funções involuntárias no laboratório. Morava agora em um shopping center, onde inclusive havia arranjado um emprego como duende de Papai Noel. As crianças e seus pais imaginavam que ele era uma espécie de pequeno autômato muito realista, e enchiam o recinto com ruídos de admiração. Nos intervalos, o Papai Noel bebia um pouco de rum de sua garrafinha metálica e revelava a Eduardo toda a sua estranha alegria de ter criancinhas sentadas em seu colo. Eduardo permanecia entediado em suas tarefas de duende, que lembravam demais seu período na tenda das aberrações, até que no início de uma noite que nada tinha de especial, uma mulher que estava de mãos dadas com seu filho na fila do Papai Noel deu um espirro muito forte, de boca aberta, lançando muco e perdigotos para todos os lados. Juntamente com estes, arremessou também uma mulherzinha sorridente de dez centímetros aos pés do Papai Noel. Ao vê-la, coberta pela gosma brilhante, Eduardo foi tomado de tamanha alegria que começou a inchar. Inchou sem parar, como um baiacu, até começar a flutuar pelo shopping, para espanto dos freqüentadores, que desviaram a atenção da mulherzinha recém-surgida. Em certo ponto a felicidade de Eduardo chegou a um ponto em que seu pequeno corpo explodiu e seus fragmentos pulverizados caíram devagar, como neve fina, sobre a decoração natalina do shopping.

Nas linhas acima lembramos de Eduardo, mas na verdade gostaríamos de contar a história de Ana, que nasceu normalmente através de uma vagina, após nove meses de gestação tranqüila, e cresceu até quase um metro e setenta e quebrou o braço aos nove anos mas se recuperou bem e foi uma criança e uma jovem feliz e casou com o belo e bom Gabriel e teve três filhos obedientes e morreu velhinha em uma tarde depois de tomar chá com biscoitos de gengibre. Mas ela morreu no parto, coitadinha, e graças a isso não viveu e nada temos o que contar sobre ela.

Daniel Pellizzari escreve às quartas-feiras no Popular

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