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    DANIEL PELLIZZARI
mojo333@terra.com.br

Milho e Ervilha

Quarta, 15 de maio de 2002, 18h05



É.

Ainda bastante molhado de chuva, esperava meu xis-calabresa-com-pernil sem milho e ervilha. O sujeito da frase anterior, neste caso, sou eu mesmo. Não é um personagem falando em primeira pessoa, não é ficção. Quem está aqui sou eu mesmo, Daniel Pellizzari, aparecendo pela primeira vez neste espaço e na situação não muito confortável de estar esperando um xis em meio a uma chuva que parece que nunca vai parar. Aqui em Porto Alegre todos os xis vêm com milho e ervilha, o que deixa quase todos com o mesmo gosto. Eu peço sem, para poder perceber as diferenças de boteco pra boteco. Milho e ervilha em conjunto acabam com qualquer sutileza possível, mesmo em um sanduíche sem glamour algum.

Quando meu xis finalmente chegou, ergui a cabeça para tascar uma mordida científica mas parei no meio do caminho. Costumo sentar de frente para a rua sempre que possível, para poder observar os passantes. Desta vez dei de cara com um mendigo com uma enorme cabeleira e um cigarro pendurado nas beiçolas, parado de perfil em meio à chuva. Sem calças. Mesmo de longe era possível perceber que logo abaixo das nádegas e se espalhando pela parte interna das coxas ele tinha uma crosta de algo que não preciso definir. Confio na capacidade dedutiva de meus seletos leitores, todos criaturas deveras atentas e inteligentes. Ele estava ali, imóvel, pegando chuva com uma bituca molhada na boca. Simplesmente ali. Pessoas de guarda-chuva passavam rápidas por ele, que não merecia nem uma olhadela rápida. De repente, ele levantou os braços e saiu correndo.

Nada de mais, esta é uma cena comum no centro de qualquer cidade razoavelmente grande. Neste mesmo centro de Porto Alegre onde semana passada um conhecido meu encontrou uma versão mendicante da Pietá. Sabem a Pietá? A Virgem Maria com Jesus morto no colo? Pois. Ele encontrou em um canto uma mendiga sentada, chorando, com um bebê morto no colo. O olho dele encontrou a cena bem no momento em que ela cobria o corpo do bebê com um pano. De coadjuvantes contávamos com um séquito de garotinhos que não morreram quando eram bebês, rodeando a mendiga e repetindo O mano morreu, moço. O mano morreu. Essas são coisas que acontecem. Acontecem no centro. A maioria das pessoas não vê ou não quer ver, da mesma forma como quase todo mundo pede um xis, ganha de brinde meia xícara de milho e ervilha e mesmo assim não reclama. Mastigam o milho e a ervilha, comem tudo com o mesmo gosto e não se importam. Nem pensam na existência alienígena do milho e da ervilha em seus sanduíches. Passam reto por
mendigos na rua, quando calham de encontrá-la. Pra quê perder tempo com isso? Xis é uma porcaria mesmo, é um lanche tosco. Deixa ali o milho e a ervilha, ora. Não vamos complicar as coisas. A vida é assim.

Mas então eu mordi o xis e a calabresa era picante, muito boa. Isso me lembrou de uma história que contei pra mim mesmo certa vez, quando eu ainda tinha a sorte de ser criança e não morar na rua e de estar vivo. Não que isso me impeça de um dia estar sem calças na chuva, mas pelo menos de um dos percalços eu já estou livre. Mas a história: era alguma coisa sobre uma mulher que morava em uma casa com sótão. Certo dia ela cansou de comer milho com ervilha e resolveu fazer uma faxina em todos os cômodos da casa. Chegando no sótão, começou a remexer em tudo e levantar poeira, sempre acompanhada de seus sete gatos. Abrindo um baú, encontrou um par de botas que tinha usado aos quinze anos. Sorriu, tirou as botas do baú e se assustou com uma aranha que surgiu sonolenta de dentro de uma delas. Bateu uma na outra, para acabar com a existência do aracnídeo, e teve uma surpresa: seus oito gatos caíram duros, todos ao mesmo tempo. A aranha também morreu.

Eu achava engraçado brincar com provérbios, expressões e modos-de-dizer quando era criança. Ainda gosto. Assim como as pessoas são as criaturas. Mas a história continua, porque na época eu ainda não tinha aprendido a parar na hora certa, ou seja, duas ou três frases antes de entregar o óbvio. No restante da história a personagem se fascinava com o poder de exterminar tudo que fosse vivo ao seu redor com um simples bater de botas. Assim se foram credores, uma vizinha fofoqueira, três homens que a haviam rejeitado, um juiz de futebol (ela gostava do esporte bretão) e, por engano, um escoteiro que batera à sua porta tentando vender biscoitos. Depois de aniquilar o uniformizado escoteiro, ficou progressivamente deprimida e resolveu pôr um fim à sua vida. Calçou as botas com cuidado e, com um sorriso no rosto, bateu uma na outra. Tudo ao seu redor desapareceu, mas ela continuou viva, perdida para sempre em um limbo sem cima ou baixo, frente ou fundo, luz ou sombra.

Depois de terminar o xis, fui caminhar um pouco na chuva e encontrei de novo o mendigo sem calças. Dei Olá e ele não respondeu. Saiu correndo de novo, mas sem levantar os braços.

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