O mundo como é,
os vivos como estão

Daniel Pellizzari
[trecho de livro em progresso]



Amanhã duas das minhas crianças morreram. Peguei os corpos e levei até os fundos da garagem, desci a escada e enterrei com os outros no porão. Faz um tempo que comecei a colecionar. São muitos tipos. Uma criança de oito anos nunca afasta a mão do meio das pernas. Uma de quatro pode servir como gerador. Outra de ano e meio passa o dia inventando formas de se matar. A ocupação dos pais é não deixar que isso aconteça. Mas não sou mãe dessas crianças, também não sou pai de ninguém, elas só estão aqui. Vão chegando, eu recebo, abrigo e classifico. Depois enterro. Uma vez antes da catástrofe meu vizinho disse que filho é a pior doença venérea. Era urologista, um médico homem que cuidava de pênis quando isso ainda era necessário. Aí cortaram os pênis e mataram os urologistas. Todos os dias eu saía até a frente da casa e ficava olhando pra ver se tinha chegado mais alguma criança. Às vezes do meio do cinza brotava uma nódoa mais escura, as sombras se ajeitavam na forma de um rosto, de braços e pernas, de um corpo. E pronto, mais uma criança pra mim. Eu deixava entrar, tirava as roupas, lavava com a mangueira, enxugava e fazia deitar no colchão da gaiola. Mas de perto da casa eu nunca saía, não. Ali fora o que não é perigoso é vazio, e quase tudo é as duas coisas. Por isso não sei muito bem de onde saem as crianças. A pessoa que aparecia pra vender comida me disse que falaram que no miolo do parque tem umas crianças que formam umas gangues. Que essas gangues das crianças são violentas, que parecem uma correnteza. Então crianças ainda existem mesmo. De onde saem eu não sei, nem pode ser. A pessoa que aparecia pra vender comida me perguntou o que eu andava fazendo com as crianças. Não entendi. Depois a pessoa que aparecia pra vender comida quis saber se eu podia dar umas crianças pra ela em troca da comida. Afugentei a pessoa da minha casa, joguei papéis de dinheiro em cima dela, pago o dobro pra você não aparecer mais na minha frente, eu gritei. Desde esse dia, nessa casa o que se come é o que se mata. Caía garoa salgada quando uma das minhas crianças aprendeu a falar. Veio, puxou meu mindinho e pediu que eu limpasse a gaiola, que virasse o colchão. Limpei, troquei. Tirei as cracas das virilhas da criança com o jato da mangueira. Ela me pediu um nome, sugeri Sambica. Mais tarde matei uma coisa e dividi com ela, crua mesmo, carne no osso. Sambica perguntou o que se comia antes da catástrofe. Sem crueldade, eu respondi. A gente comia sem crueldade. Antes da catástrofe existia também pênis, expliquei, e uma coisa chamada dia e mais outra chamada noite. Ficava claro e depois escurecia. Não era como agora tudo uma coisa só, esse cinza sem brilho, só umas sombras. Muda o tipo de chuva, volume, cheiro, gosto e mais nada. E tinha cores no mundo também, e muita grama. Mastigamos, engolimos e acabamos de comer. Que hora tão feliz, eu disse, palitando os dentes com um arame, e Sambica quis saber quanto tempo dura uma hora. Dura enquanto durar, expliquei, dura enquanto estiver acontecendo. Depois vira lembrança. Um dia, bem quando minha pá cansou de bater terra em cima de cadáver miúdo, as crianças novas pararam de chegar. Mas as crianças que eu já tinha não pararam de morrer. E foram morrendo. Até ficar só eu, Sambica e mais duas. Todas peidando muito. Resolvi sair da casa e me afastar mais um pouco mais, tomando chuva azeda na testa. Uns dois quarteirões, dois e meio, a ver. Quem sabe topar com uma gangue de crianças. Caminhei até a esquina, segui pra outra, olhei prum lado, olhei pro outro. Não vi nada diferente, não avistei nenhuma criança, sozinha ou em bando. O carrinho de supermercado estava no mesmo lugar, guardando coisa nenhuma. Pros olhos tudo parece igual, pensei, mas por dentro está bem diferente. Voltei suada de chuva e o fedor dentro da casa martelou meu nariz. Sambica na gaiola cochichava com as duas outras crianças. As outras não falavam nada, porque não sabiam, e também estavam mortas e começando a cheirar. Mas Sambica fazia as vozes das duas. Pãe não sabe?, uma perguntou. Mai não percebe, a outra respondeu. É que ninguém contou, alguém vai contar? A gente tem fome, ela disse me olhando. Somos eu e você, respondi pra Sambica. As últimas. Não tem mais ninguém na casa. Essas duas aí estão mortas, preciso enterrar no porão. Depois que a gente for embora os gatos vão tomar conta, sabia? A pessoa que aparecia pra comprar cabelo contou que no miolo do parque os gatos mataram todos os cachorros e o urso que tinha sobrado. Sambica perguntou se podia comer um gato. Cru mesmo, carne no osso. Menti que não tinha encontrado nenhum pra matar. Sambica perguntou se podia comer as crianças mortas, e falando se babou. A fome é uma coisa molhada. Expliquei que criança não pode comer outra criança ou fica louca que nem a vaca. Sambica perguntou se podia comer meu pé ou lamber meu dedo. Enquanto ela chupava meu anular esquerdo, lembrei do cônjuge jurando que não tinha sido por querer. E eu lá, eu sei lá. Antes da catástrofe essas coisas importavam. Amanhã então eu enterrei as últimas duas crianças. Sobrou Sambica me pedindo pra lamber também um pedaço da coxa, sobrou eu menstruada e um balão de cólica, sobrou a dor na perna direita, no ombro, no peito quando encho os pulmões, por mim nada mais disso se mexia. Decidi que vamos embora da casa, vamos atravessar o parque até chegar no outro lado. Não sei mais o que tem no miolo, só respondo por esta casa. Mas a gente vai. Lembro que no começo, pouco depois da catástrofe, eu pensava que as pessoas, nós, a gente, tínhamos arruinado tudo. Estragado o mundo. Mas agora sei que foi mútuo. Um arruinando o outro, se moendo até não sobrar mais saída. O mundo não tem inocência nem acaso. E por isso agora os gatos estão tomando conta de tudo. Eles sempre vêm com a ruína. E quem não é monstruoso tem que ceder e se deixar devorar. Existe alguma dignidade em ser o último, ou pelo menos alguma tristeza, e toda tristeza é digna. Mas não cheguei até aqui pra só chegar até aqui. Nasci cabrita e depois ganhei pênis, mas perdi esse privilégio. Sou fancha e branca, sou pobre e humana, sou negra e rica, sou hétero e cabra. Acho que sou judia também, e assexual, e ambidestra, e cigana e inseto. Eu sou escrota. Meu porão é uma arca morta. Eu sou maravilhosa. Vem arrumar as muchis, Sambica, eu falei. Ontem a gente vai cruzar o parque. Em frente.



(Fragmento publicado pela primeira vez em 2018 no Anuário Todavia 2018-2019: Apocalipse?, da editora todavia, sob o título "A fome é uma coisa molhada").

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