As minhas ovelhas ouvem a minha voz. Eu as conheço
e elas me seguem. Dou-lhes a vida eterna. E elas jamais
hão de perecer, e ninguém as arrebatará de minha mão.
Jesus Cristo,
em A Infância Espiritual, de Ângelo Lucena
É madrugada do dia em que o monsenhor Isaías foi enterrado. Sentado à mesa de carvalho, o padre Mateus acaricia com os olhos os despojos de seu antecessor. O velho Isaías era uma figura folclórica, querida por todos os fiéis. Uma de suas pequenas loucuras era ter um ódio irracional por quindins, e sempre incluir alguma imprecação contra o doce em seus sermões. Apesar disso, era sempre convincente e carismático. O próprio Mateus, agora seu substituto no cargo de vigário-geral da diocese, havia se decidido pela carreira eclesiástica graças à simpatia e força do falecido sacerdote. Isaías pedira para ser enterrado junto com um pequeno baú, mas a idéia foi recusada pela Cúria, que pretende montar um pequeno museu com os parcos pertences do monsenhor. A primeira tarefa de Mateus é catalogá-los. Movido pela curiosidade, resolve começar pelo baú, que contém um livro de capa de couro e uma caixinha forrada de veludo cereja. Folheando o livro, percebe tratar-se de um diário. A frase de abertura é do profeta Zacarias: "Não desprezeis as coisas pequenas". Logo abaixo, uma anotação feita com tinta vermelha, visivelmente algum tempo depois do restante: "Presciente como uma ovelha a caminho do holocausto". Com uma caligrafia miúda e regular, o monsenhor continua:
"Estes fatos do dia de hoje guardarei até o fim como o Grande Segredo. Se escrevo este relato, não é para que outros dele tomem conhecimento, mas como penitência por ter sido sujeito de tal intervenção demoníaca - e talvez, quem sabe, para entender melhor, se isso for o que o Senhor de mim deseja. Pois caminhava eu pela catedral em uma madrugada chuvosa, em uma de minhas habituais noites de insônia, a admirar a arte por Deus inspirada. Encaminhava-me para o grande crucifixo, de onde pende Nosso Senhor em tamanho natural, quando percebi que alguém estava defronte a ele. Assustei-me um pouco, pois a igreja já estava fechada. Me aproximei, e vi que era um homem, parado na frente do Cristo, tremendo. Depois de mais alguns passos, percebi também que ele sorria. Não devia estar ali há muito, pois ainda estava molhado pela chuva. Estranhamente, vestia um pijama; mais inusitados ainda eram seus sapatos, uma espécie de enormes pantufas em forma de sapo. Com cuidado, tentei me dirigir ao ele, mas antes que pudesse eu dizer qualquer coisa, o homem saltou em minha direção e me agarrou pelos ombros. Continuava sorrindo: parecia louco, ou drogado. Dizia sem parar, com uma voz rouca mas estridente, que sabia de tudo, que entendia tudo. Estas eram suas palavras: 'Sei de tudo! Agora entendi tudo!'. Isso ele gritava com uma inflexão inquisitória, como se me acusasse de algum crime. Mantive a calma e perguntei a ele sobre o que falava. Não obtive resposta, apenas um empurrão que de tão forte me derrubou em meio aos bancos da igreja. O homem gargalhou e começou a gritar loucuras, completos absurdos. Enquanto falava, sua voz mudava de tom e altura - 'legião', lembro ter pensado. Durante um longo tempo ele gritou suas imprecações, e num repente virou as costas e desapareceu em direção à sacristia. O esforço que empreendo para relacionar aqui suas declarações é imenso, mas este papel é por demais inocente para tanta perversidade. Serei breve, pois grande é minha culpa - sei que não devo ser de todo puro por ter sido de certa forma veículo desta abominação. O homem, que com certeza estava possuído por espíritos malignos, acusou a Igreja de ser uma grandiosa conspiração milenar para destruir a raça humana. Baseava seus absurdos em uma inominável blasfêmia: repetia a cada segundo que Nosso Senhor Jesus Cristo era um vampiro (ou melhor, o maior de todos eles), uma criatura das profundezas que se alimentava do sangue dos fiéis. Suas assim chamadas evidências eram espúrias: balbuciou algo sobre a vida eterna e alguns trechos da Sagrada Eucaristia que versam sobre o sangue de Cristo. E foi isto. Pelo menos da parte do endemoniado, pois meu tormento não tinha acabado aí. Quando ele desapareceu, rapidamente me ergui e tomei o rumo da sacristia a passos rápidos. De repente, algo passou correndo sobre meus pés. Pensei tratar-se de um dos ratos que vivem na igreja apesar de todos os cuidados, mas não podia ser: a coisa brilhava como se possuísse luz própria. Sobressaltado, pousei os olhos sobre o altar e (Deus me perdoe), no lugar do crucifixo, enxerguei um enorme órgão genital masculino, um pênis imenso, branco como cera. Entrei em um estado de pavor que quase me congelou os membros, mas ainda tive forças para caminhar até o relicário onde estava a hóstia consagrada. Aqui estava a última piada do Demônio: no lugar da hóstia, encontrei um doce - um quindim. Fechei os olhos, fiz o sinal-da-cruz e murmurei as primeiras palavras do rito de exorcismo. Ainda ofegante, abri os olhos e vi que o pênis havia desaparecido, mas o quindim permanecia no relicário. Eu me encontrava em um estado de tamanho pavor que não consegui pensar em outra coisa além de me recolher a meus aposentos, levando o quindim comigo, e é assim que escrevo estas palavras. Sentado à minha mesa, frente a uma pequena caixa onde guardei o doce. Minha fé em Deus continua inabalada, apesar deste terrível ordálio. Sei que nunca poderei compartilhar estes terríveis momentos com alguém, mas dedicarei o que me resta de vida material à revelação que me foi feita esta madrugada. Estas palavras ainda me soam estranhas, mas prometo pelo Sagrado Coração de Jesus que todos irão saber a Verdade: o quindim é a hóstia de Satã."
Passando a língua sobre os lábios secos, o padre Mateus larga o fantástico relato do monsenhor Isaías. Toma nas mãos a caixinha, sente a maciez do veludo, abre o pequeno trinco com delicadeza e, cuidadosamente, ergue a tampa.
Dentro da caixa, imaculado, repousa o quindim.