Erosão humana, a fusão emana daqui
Caldeirão do inferno, o mundo inteiro ebuliu
E nos bastidores da cidade
Os ratos se multiplicam
Hique Gomez, Previsão dos Tempos



1997. Agosto. Noite. Um bar. Tequila, cerveja e maconha.

LEOPOLDO: Sacam o cara aquele, o Norival?

ADRIANA: Aquele teu vizinho louco?

LEOPOLDO: Esse mesmo.

GERALDO: Só.

ADRIANA: Que tem ele?

LEOPOLDO: Porra, ontem encontrei o cara, não via há séculos. Ele fica sempre trancado numa sala dos fundos da casa dele.

ADRIANA: E aí? O que rolou?

GERALDO: Não é o cara aquele que não usa papel?

LEOPOLDO: Aí que ele me olhou pelo muro e riu.

ADRIANA: Tá, e daí?

GERALDO: É ou não é o cara que não usa papel? Nem higiênico, não é isso?

LEOPOLDO: Sei lá, o jeito que ele me olhou e riu foi estranho. Ele tem aqueles planos dele, de destruir a humanidade e tal.

ADRIANA: Pois é, o cara é louco.

LEOPOLDO: Totalmente. Vocês vão achar ele ainda mais enlouquecido se souberem como começaram essas viagens ecodebilóides que ele tem.

GERALDO: Esse aí não é aquele pinta que diz que é pra usar água em vez de papel higiênico?

ADRIANA: Conta logo, essa história deve ser das boas.

LEOPOLDO: Tá, vou resumir. Pede mais uma tequila aí. Certo: bem, a mãe do cara é fanática por Roberto Carlos.

ADRIANA: Roberto Carlos da antiga ou atual?

GERALDO: Sobrou alguma ponta?

LEOPOLDO: Todos, todos. Ela ama o Roberto Carlos, acima de qualquer coisa. O Norival também cresceu assim, fanático pelo Roberto. Lembro que quando a gente era moleque, ele só falava em Roberto Carlos e em passarinhos. Ele adorava observar passarinhos, e se escondia pra observar com cuidado. Roberto Carlos e passarinhos. Só isso, o dia inteiro.

GERALDO: Vou dar uma volta e fumar isso aqui, alguém quer?

ADRIANA: Ele não é órfão de pai?

LEOPOLDO: Isso.

ADRIANA: Ah, clássico. Substituição de figura paterna.

LEOPOLDO: Não racionaliza, nem vem. Escuta. Tá, daí um dia eu encontrei o cara chorando no meio da praça. A gente devia ter uns doze anos, acho. Sei lá, também.

ADRIANA: Tá, tá, pula essa parte.

LEOPOLDO: Pois é. Fui falar com ele, saber o que tinha acontecido. Daí ele me veio com umas histórias...

ADRIANA: Ele já parecia louco nessa época?

GERALDO: Tá, vocês não querem fumar?

LEOPOLDO: Peraí, me deixa falar, foi nesse dia que ele pirou, eu acho. Ele me veio com umas histórias esquisitas, Agave Sativo na Cabeça Atávicadizendo que tinham mentido pra ele, que o Roberto Carlos tinha enganado ele, coisas assim.

ADRIANA: Só isso?

LEOPOLDO: Eu pedi pra ele explicar, e ele começou a cantar aquela música: eu quero ter um milhão de amigos...

GERALDO: ...e bem mais forte poder cantar!

ADRIANA: Como é mesmo o nome dessa música?

LEOPOLDO: Sei lá, não importa. Ele cantou a música todinha, e ficou repetindo uma parte. Repetia e me olhava. Repetia e me olhava.

GERALDO: Uma merda, esse fumo.

ADRIANA: Que parte?

GERALDO: Ei, esse cara aí não é aquele que não toma banho pra economizar água?

LEOPOLDO: "Eu quero um coro de passarinhos". Só isso. Ele ficava cantando: "Eu quero um coro de passarinhos", e me olhava. Eu não entendia porra nenhuma.

ADRIANA: Ué, ele não gostava de passarinhos? Devia ser isso.

LEOPOLDO: Bem, era. Ou quase. Depois de cantar umas mil vezes, ele desistiu e foi correndo pra casa. Eu corri atrás e pedi desculpas por não entender, mas que ele tinha que me explicar o que o Roberto tinha feito, eu merecia saber, era amigo dele, essas coisas que a gente diz quando tá curioso.

GERALDO: Esse cara queria fazer um lance pra suicídio por telefone, não é esse aí o cara?

ADRIANA: E aí?

LEOPOLDO: Ele parou, me abraçou e cantou mais uma vez. Só que bem devagar, destacando as sílabas, assim: "eu que-ro um cou-ro de pas-sa-ri-nhos". Couro. Couro de passarinhos.

ADRIANA: Não acredito.

LEOPOLDO: Eu disse pra ele que era outra coisa, que era coro, coral, passarinhos cantando juntos de manhã, coisas assim, mas ele não se convenceu. Disse que ele também achava isso antes, mas que depois percebeu a verdade. Falou de um plano para destruir a Terra, que o Roberto Carlos era um dos conspiradores, coisas do tipo.

ADRIANA: Paranóia sofisticada para doze anos. Parabéns para ele.

GERALDO: Ninguém tem mais alguma ponta aí?

LEOPOLDO: A partir daí ele ficou estranho, não saiu mais de casa, o resto vocês sabem, já são meus amigos há bastante tempo.

ADRIANA: Cara louco.

LEOPOLDO: É. Ele era legal, mas pirou de vez. Não sei porque a mãe não interna. Dá medo, às vezes.

ADRIANA: Sobrou uma ponta aí, Geraldo?




Sorrindo, Norival retira o pano que encobre a gaiola.

"Olá, meus filhos. Estão com frio?"


Ratos fluorescentes não falam.


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