Existem vários psicotrópicos da família da
noz-moscada em uso entre os índios da América do Sul. Eles são
geralmente administrados ao cheirar-se o pó seco da planta. Os pajés
absorvem essas substâncias tóxicas e entram em estados convulsivos. Se
acredita que suas contrações e murmúrios têm significado profético.
William Burroughs, Cartas de um mestre no vício de drogas perigosas

 

Apóio minhas mãos nas paredes encardidas do mictório que se diz público mas é território exclusivo de pobres pederastas. Não, eu não sou um deles, sou apenas um estranho que verte o suco das entranhas na louça rachada de uma privada surpreendentemente limpa. Quando prendo a respiração me concentro nas cores mutantes do meu material gástrico, nas diferentes texturas, nos fragmentos que acompanham o espetáculo. Meu intestino ruge, e com um último arroto que não chega a me nausear termino o que era essencial e me volto para a saída do mictório. Estrelículas ainda pipocam em minha retina, mas enxergo o anão que, encostado na porta, me sorri. Com as costas da mão esquerda limpo um fio do vômito que me escorria pelo queixo. O anão escancara ainda mais o sorriso e exibe os pequenos dentes de madrepérola.

Me aproximo e, pela cor do uniforme, percebo que aquele não é meu anão. Desde que o vi suspeitava disso, pois o meu não é dado a perambular por mictórios. Além do mais este tem traços caricaturais, olhos injetados, boca pantagruélica — o meu mais se parece com uma marionete. Massageio minha O olhar, o anão e o axolotlrampante barriga enquanto o observo com mais atenção. Imediatamente ele aborta o desfile dos dentes e une as sobrancelhas em prece, mas já é tarde demais. Já foi reconhecido: pertence ao guardador de carros.

Kumba Zinte, o guardador de carros, diz ser o filho de um príncipe bantu. Pode ser verdade, pode não ser. Se for ou se não for, na verdade não há muita diferença. Afinal de contas, o que é ser herdeiro do trono bantu hoje em dia? Mas Kumba se orgulha de sua nobreza, e eu nada digo que o desanime em sua soberba. Um dia, enquanto esperávamos pelo galeão na beira da pista, ele me contou com saudades da época em que seu pai possuía um pigmeu, recebido como dote pelo segundo casamento de sua mãe. Foi então que lhe contei dos Tupamaros e das técnicas de encolher cabeças e corpos e vísceras e mentes. Ah, e Kumba Zinte, o herdeiro bantu, iluminou o rosto com o marfim de suas presas e partiu para o Alto Amazonas. Retornou cinco anos depois com este anão, e nunca mais falou comigo. Como não conheço nada da África nem do Amazonas (nasci por aqui mesmo), não entendo a razão deste comportamento.

Contemplando os traços rudes mas imberbes do anão amazônida, fui tomado por uma imenso vácuo que só o meu próprio anão poderia suprir. Torci para que ele não seja capturado e possa me encontrar aqui neste mictório, a cabeça repousando sobre uma privada transbordando uma grossa papa de iogurte, noz moscada e ácido gástrico. Ele, meu anão-pigmeu, irromperia sapateando pela sujeira secular deste ambiente estranhamente agradável (ousaria eu chamá-lo de uterino?) e deslizaria com classe até meu corpo prostrado sobre a imundície sagrada.

Então ele pegaria em minha perna, e todo o resto seria nada.

 


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