O Sapo-no-buraco podia estar dormindo, mas não
estava morto; e disso nós tivemos logo prova ocular.
Thomas DeQuincey, Do Assassinato como uma das Belas Artes

 

Enquanto tomava o copo d’água, Rolando Sayão rememorou todo o sonho que lhe arrancara da cama: de novo o anão, seis meses ininterruptos de noites divididas com uma criatura pequena, disforme e misteriosa, mas acima de tudo dançarina. Do anão já fora dono, escravo, irmão, amigo, amante, pai, mãe, pênis, pés, tudo — mesmo assim, nunca chegou perto de saber quem ou o que ele representava.

Sentado na mesa da pequena cozinha de azulejos impecavelmente brancos (ampliam o ambiente, todos sabem disso), começou a sentir-se incomodado pelo tictactictictactictac sem fim do relógio pendurado sobre a geladeira. Em sua inocência de autômato, o relógio não tinha como saber que parecia estar marcando o compasso para o balé enlouquecido do anão que assombrava os sonhos de Rolando.

Com uma convulsão, levantou-se da mesa e esmagou o copo no relógio. O vidro espatifou-se, mas o plástico que protegia os ponteiros permaneceu intacto. Apenas as marcas de sangue maculavam sua soberba (tictactictactictac dance anão, dance na cabeça de Sayão tictactictactictac).

Anão dança com o relógio de Sapão Sayão

"Merda".

O que começou entre resmungo e soluço logo tornou-se rugido:

"Merda. Merda. Merda!".

A mão esquerda agarrada no pulso direito, a água da pia lavando o sangue, vários pedaços de vidro cravados na palma, no dia seguinte seria ainda mais difícil agüentar a sala de aula, o giz que lhe dava alergia, a petulância daquelas crianças cheias de hormônios em ponto de ebulição. Com cuidado, arrancou um a um dos pequenos cacos, não sentindo dor alguma, não sentindo nada — pensava apenas em seus sonhos. Começou a vasculhar os armários. Precisava de um pano de prato limpo para enrolar as mãos, já que não tinha gaze. Remexendo pratos, copos e recipientes diversos, teve o olho capturado por um pequeno vidro no fundo de uma prateleira. Foi então que lembrou.

Olhando para o vidro, quase sentiu a presença do anão às suas costas, como uma hiena onírica a lhe espreitar a noite patética. Começou a suar. Tremendo um pouco, pegou o pote e olhou o rótulo com atenção. Rosqueou a tampa vermelha, sentiu o cheiro, leu de novo o rótulo. Noz-moscada. Lembrou: no sonho desta noite, estava em um banheiro público e vomitava noz-moscada antes que o anão aparecesse. Esqueceu do pano de prato, colocou o potinho de vidro na mesa e passou a contemplá-la como um alquimista que houvesse descoberto a pedra filosofal.

Com cuidado pegou uma colher na gaveta e abriu mais uma vez o potinho. Enfiou o dedo, sentiu o gosto: forte, quase insuportável. Encheu uma colher, respirou fundo e encheu a boca com o gosto da noz-moscada. Na mesma hora tonteou, expirando o cheiro poderoso da especiaria, que como veneno lhe descia perfumando a garganta. "Iogurte", lembrou, como no sonho. Tropeçando abriu a geladeira, e o contato com o frio do metal o fez lembrar dos cortes na mão. "Depois", pensou. "Depois".

Noz-moscada, iogurte, uma colher, um copo. Mexendo bem, Rolando transformou a mistura em uma papa ocre de cheiro repugnante. Prendeu a respiração e bebeu tudo com rapidez, o iogurte-moscado lhe grudando nas entranhas, trinta gramas de uma especiaria barata (ah, o que seria do mundo sem as especiarias... o que seria da América?) prestes a ser injetada por via indireta em sua corrente sangüínea. Limpou alguns pingos que haviam caído no pijama azul desbotado, vestiu suas pantufas de sapo-monstro e saiu do apartamento.

Ainda era cedo, e começava a chover.

 


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