Clipagem


Jornal A Crítica
Manaus, Março de 2003


O talento de um amazonense bastante gaúcho
[Omar Gusmão - Especial para A CRÍTICA]

A mídia escrita nacional, em especial os jornais “O Estado de S. Paulo”, “Folha de S. Paulo” e as revistas “Época” e “Carta Capital”, noticiou o surgimento da editora Livros do Mal com entusiasmo, a anunciando como uma entidade que reúne jovens autores gaúchos cheios de talento e inventividade. Entre os gaúchos incensados pela mídia do Sudeste, encontra-se um talentosíssimo gaúcho nascido mais especificamente em Manaus. Isso mesmo! Daniel Pellizzari, autor de “Ovelhas que voam se perdem no céu” (2001) e “O livro das cousas que acontecem” (2002), ambos editados pela Livros do Mal, “escolheu nascer em Manaus no dia três de março de 1974. Mora em Porto Alegre desde um pouco antes de completar dez anos”, como ele mesmo faz questão de relatar na nota biográfica de “O livro das cousas que acontecem”.

É bem verdade que nas duas excelentes obras do amazonense o sotaque gaúcho, com a urbanidade de Porto Alegre acentuada, se sobressai. Ambos são livros de contos fantásticos, que mais se assemelham a crônicas. A narrativa escolhida, apesar de quase sempre abrigar alegorias bizarras, se assemelha à velocidade do pensamento, dando ao leitor a impressão de que penetrou a consciência – e muitas vezes o inconsciente – das personagens.

A experimentação lingüística de Daniel Pellizzari não se limita à velocidade da linguagem e ao tratamento verossímil que dispensa, ao narrar os fatos mais incongruentes, bizarros e improváveis. Pellizzari brinca também com a subversão de regras de pontuação, quando, por exemplo, dispensa as convenções para passar do discurso direto ao indireto, da narração à fala da personagem.

Fica bem claro ao leitor que o autor não tem pretensão nenhuma de contar histórias com começo, meio, fim e moral. Sua intenção é fazer o registro de momentos e fatos de um mundo onde tudo pode acontecer e onde as coisas acontecem sem necessidade de significação ou conseqüência. É assim quando o homem que fizera amizade com as aranhas de sua casa decide exterminá-las todas com o aspirador de pó; ou quando a mulher que assava o pernil fica entediada de ver gatos, vacas e velinhas caindo pela janela do apartamento em direção à garagem do prédio e volta a seus afazeres de cozinheira. Não há porquês. As coisas (ou cousas) simplesmente acontecem.


O livro das cousas que acontecem

O fantástico, surrealista e bizarro – classificado pelo autor como metarrealismo – continua no segundo livro lançado pela editora Livros do Mal. O aposentando Leonel acorda com um buraco na cabeça que não pára de falar desconexamente até que ele introduz uma rolha; a contorcionista de circo espirra um homúnculo, que foge cansado de ser atração dos horrores; buracos engolem personagens das mais variadas origens; Kafka, Cartázar e Beckett se embriagam num bar. Tudo cousas que acontecem com uma absurda verossimilhança que Pellizzari consegue imprimir.

Lendo as histórias de Pellizari, tem se a nítida impressão de que a literatura está passando por uma transformação profunda, semelhante à que passou a pintura quando deixou de ter a mera função de retratar a realidade. O amazonense-gaúcho não quer simplesmente representar a realidade com seu conto-crônica. Ao contrário, quer transformá-la, subvertê-la e encantá-la com sua arte.


Ovelhas que voam se perdem no céu

No livro de estréia, ao citar Fernando Pessoa na abertura do conto “O vôo das ovelhas”, Pellizzari nos deixa entrever a filosofia que move seus escritos: “Eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos – as cousas não têm significação; têm existência. As cousas são o único sentido oculto das cousas”.

Em “Ovelhas que voam se perdem no céu”, o autor desfila seu elenco de bizarrices numa narrativa que aproxima o bizarro do cotidiano, como que numa crônica policial de jornal. Tem o homem apaixonado que compra um bebê no cruzamento e o prepara como prato principal de um jantar à luz de velas para comemorar o aniversário de sua namorada; o escritor que não era feliz o suficiente para se tornar mendigo; o casal que dá uma volta de carro a esmo, após decidir seguir rumo ao infinito; além do homem que, ao se engolir pela boca e ânus, desaparece por inteiro. Todos ovelhas voadoras.