Clipagem


Jornal A Tarde (Salvador)
16 de novembro de 2002
Por Patrick Brock


Habitantes do húmus

A Livros do Mal (www.livrosdomal.org), editora independente de Porto Alegre, chega a Salvador com a publicação de um autor local. O baiano Paulo Bullar estréia com Húmus, coletânea de contos escritos nos últimos três anos. O livro de Bullar, assim como os outros títulos da editora, estão à venda em Salvador, no sebo Berinjela, na Sé.

O rápido crescimento da Livros do Mal e sua expansão para outras capitais do país aceleram a renovação da literatura brasileira, em um processo cujo campo de experimentação é a internet, e a publicação é feita em cooperativa.

Tudo começou em 2001, quando Daniel Galera, Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla decidiram montar uma editora independente, voltada para a publicação de novos autores. A iniciativa foi premiada com o primeiro lugar no edital do FumProarte, mecanismo de fomento às artes da prefeitura de Porto Alegre.

Segundo os editores, o objetivo é ôdar espaço para a produção e discussão do novo na literatura e, posteriormente, nas artes em geral.ö Desde o seu lançamento, em outubro de 2001, a editora já publicou seis livros em duas coleções diferentes, Contra a capa (livros de estréia) e Tumba do cânone (narrativas de ficção). “No mês passado, a Livros do Mal fechou um ano de existência, e percebemos que foi possível alcançar todos os nossos objetivos: publicar um catálogo de seis livros, lançar autores novos cuja literatura tenha qualidade e originalidade, distribuir os livros num esquema independente e tornar conhecida a nossa marca e a nossa proposta”, comemora Daniel Galera.

Os novos lançamentos, além de Húmus, são Ou clavículas, de Cristiano Baldi e O livro das cousas que acontecem, de Daniel Pellizzari, este último, inaugurando a coleção “Tumba do cânone”. Os primeiros títulos lançados, Dentes guardados, de Daniel Galera, Ovelhas que voam se perdem no céu, de Daniel Pellizzari, e Vidas Cegas, de Marcelo Benvenutti, tiveram uma surpreendente repercussão na mídia nacional, como fica comprovado na extensa coleção de resenhas, matérias e artigos no site da editora.

Os livros impressionaram pela qualidade dos textos, pelo estilo marcante de cada autor e a busca por novas linguagens literárias.

A editora funciona como uma cooperativa, onde autores e editores dividem os custos. Os autores investem na impressão dos livros, enquanto a Livros do Mal edita, divulga e distribui as obras. Os livros são confeccionados em papel de qualidade, com excelente projeto gráfico e uma tiragem média de 600 exemplares.

Para a distribuição, a editora conta com pontos de venda em São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, João Pessoa, Belo Horizonte, Porto Alegre e, agora, Salvador. “Paulo Bullar é o primeiro autor de fora do Rio Grande do Sul que a Livros do Mal publica, e isso é importante para mostrar que a nossa proposta não é ficarmos restritos a autores da cidade ou estado onde moramos”, explica Galera.

Todos os autores editados pela Livros do Mal publicaram anteriormente na internet. Nos últimos dez anos, a rede tem sido um campo prolífico de experimentação e distribuição de textos literários e outras obras de arte. Durante o período em que escreveram para a internet, estes autores aperfeiçoaram seu estilo, experimentando novos caminhos e recebendo comentários dos leitores.

O resultado, como definiu o escritor João Gilberto Noll, em entrevista recente, “é que está havendo um franco renascimento da literatura brasileira, na poesia e principalmente na narrativa. Como querer descobrir a palavra artística brasileira atual desconhecendo, por exemplo, só para ficar com alguns conterrâneos meus, um Daniel Galera e Daniel Pellizzari”.

Algumas editoras vêm abrindo os olhos para a nova geração, a exemplo da Conrad Editora, que publicou Máquina de Pinbal, de Clarah Averbuck, também egressa de site da internet, e Clube dos corações solitários, de André Takeda, editor do site www.txtmagazine.com.

Paulo Bullar, na verdade, é um pseudônimo. O autor, que tem 22 anos, conta que “Bullar foi um nome criado para publicar na internet, não sei ainda o que ele é exatamente, pseudônimo, heterônimo ou personagem (o Bullar transmuta-se em personagem em uma das estórias).

Como alguns leitores da internet já me conheciam como Paulo Bullar, decidi continuar usando o nome”. Bullar começou a escrever na internet, e acredita que esta “possibilita novas experiências, já que a maioria das editoras só apostam em fórmulas que já deram certo, o que deixa a literatura estagnada”.

Os dezessete contos de Húmus, apesar de escritos isoladamente, têm uma unidade de estilo marcante, ao ponto de os contos parecerem capítulos, com repetição de personagens e cenários. O livro é dividido, basicamente, em duas partes.

Na primeira, o autor explora o tema que chama de “zoofantástico”. O resultado é uma ficção repleta de animais imaginários (ratos de um metro de altura, cágados arteriais e leões hedonistas) e personificados em fábulas subversivas. Na segunda, o autor explora o fantástico urbano, com personagens angustiados e paranóicos, que interagem em um mundo opressor, como fica evidente no conto “Corpos dóceis” (referência à filosofia de Michel Foucault).

Os animais imaginários e as pessoas atormentadas de Bullar são o húmus que povoa o mundo, uma legião de seres vivendo e morrendo, transando, transgredindo e se desesperando.