Clipagem
B*Scene
Como quase toda obra de escritor estreante, Ou Clavículas (Livros Do Mal, 112 p., R$ 15) é, na pior das hipóteses, irregular e, na melhor, cheio de talento bruto e vitalidade. O primeiro livro de Cristiano Baldi (26) prefere o grotesco ao belo; o patológico ao sublime. Em um dos 23 contos do livro ("Gente Legal, Bonita E Charmosa"), o narrador confessa: "Nunca fui de gostar de mulheres perfeitinhas. Prefiro o tipo gostosa meio podre. Uma celulite leve. Umas varizes fraquinhas." Baldi sabe que, ao invés do que mostram as propagandas na TV, ninguém é perfeito. O grande prazer da sua escrita é explorar esses territórios imperfeitos, escuros, nojentos, gosmentos e, quase invariavelmente, patéticos. Enquanto uns verão nas histórias de Ou Clavículas situações cômicas, outros não deixarão de encontrar, nas mesmas histórias, exemplos do mais acabado mau gosto. Um exemplo dessa frágil fronteira entre o cômico e o grotesco está no melhor conto do livro ("Fábio Júnior"). Uma empregada doméstica vai ao show do cantor Fábio Júnior enquanto, em casa, vendo o show pela TV, o adolescente da família (e também habitué da cama da empregada) vê o astro esfregar no rosto uma calcinha vermelha que acabava de ser atirada ao palco. Ele diz: "Sim! O Fábio Júnior esfregou a minha porra no rosto. (...) A minha imundície cerebral arbitrariamente escancarada sobre 34 pontos de audiência. E na cara do Fábio Júnior." Esse cinismo profissional de Cristiano Baldi encontra eco em autores como o Philip Roth de Complexo De Portnoy ou o Marcelo Mirisola de O Herói Devolvido. A ordem em Ou Clavículas é não poupar ninguém: católicos, judeus, comunistas, heterossexuais, invertidos, empregadas domésticas, deficientes físicos... O autor pratica o sarcasmo como profissão de fé. Um sarcasmo - por que não? - muito bem-humorado. O cotidiano, sob a escrita de Baldi, parece ser uma imensa sucessão de acontecimentos grotescos. Nada permanece em seu lugar. Outro adjetivo também parece apropriado para descrever Ou Clavículas: visceral. Por um lado, em quase todos os contos há uma atenção desmedida para partes do corpo humano (geralmente digestivas ou sexuais). Por outro, a escrita tem a capacidade cirúrgica de revelar o que há de mais entranhado e secreto, o que há de podre e oculto nas relações humanas. No mundo retratado por Baldi, a religião serve para pouca coisa e a razão - nossa tão superestimada razão - torna-se apenas um jogo lógico que serve para justificar qualquer ato (pode-se explodir judeus simplesmente porque "eles fedem"). Nesse mundo aparentemente insano, só nos resta a superfície das coisas, aquilo que é mais exterior e transparente. Olhamos ao redor e vemos corpos humanos (nenhum deles especialmente bonito) embalados em roupas e, ao menos nas grandes cidades, andando pra lá e pra cá em caixotes de aço movidos por um motor a explosão. A força que move as personagens de Ou Clavículas é também aquela que alimenta o mundo das propagandas de TV: a busca desesperada pelo prazer. O que a publicidade tenta, a todo custo, o tempo todo, é criar pessoas que funcionem a partir de impulsos. Algo como aqueles ratinhos brancos de laboratório que, após levarem alguns choques, ficam condicionados a repetir algumas ações e evitar outras. Assim também a propaganda tenta fazer as pessoas acreditarem que encontrarão prazer ao adquirir esta ou aquela marca, este ou aquele produto. (E o mais engraçado é descobrir como os seres humanos, às vezes, funcionam exatamente como ratinhos de laboratório.) No livro, quando o pai do adolescente em "Fábio Júnior" resolve comprar um aparelho de som da marca Philips para a empregada, o narrador arremata: "Um Philips era demais para alguém com aquele vocabulário e aquele sotaque." Fábio Júnior, caldo Knorr, novela mexicana do SBT, máscara do Pato Donald comprada em shopping, cigarros Derby, Francisco Cuoco. A cultura de massa invade quase todos os contos do livro, mas a sensação é muito diferente daquele prazer de supermercado que a propaganda tenta nos enfiar goela abaixo como a panacéia universal da última semana. Baldi trabalha a partir de um prazer proibido e, em última instância, inacessível: a liberdade. Mas que ninguém se engane: os personagens de Baldi estão longe de serem "livres": eles são sempre escravos de seus instintos. Baldi é quase freudiano ao construir gente que é prisioneira de seus impulsos (normalmente inconfessáveis). Mas a análise do autor não admite compaixão. Há também sadismo na relação do narrador com os personagens das histórias narradas. Alguém pode acusar Baldi de preconceituoso ou mesmo racista. Mas ele simplesmente está pouco se lixando para o "bom-mocismo de padaria" politicamente correto. O narrador é sempre superior a seus personagens e, como um analista megalomaníaco, ele coloca o mundo no divã e a todos julga. Um olhar clínico, treinado para ser identificar descobrir fetiches, taras, obsessões e outras neuras. Com esse olhar próprio, mistura de inocência e clínica, de fúria e sutileza, Baldi consegue retratar um universo que, sendo uma imensa comédia de costumes, é também retrato das banalidades do dia-a-dia. Sendo um anti-publicitário por excelência, o autor não deixa de ser uma bomba atômica na mesmice (seja de seus personagens, seja de seus leitores). É também interessante notar que, em um mercado literário cada vez mais parecido com prateleiras de supermercado, cada vez mais surgem autores que com verve e capacidade para, num paradoxo interessante, só levarem a sério aquilo que pode ser ridicularizado.
Claro, o caminho do sarcasmo desmedido nunca é muito longo. Philip Roth mostrou o caminho quando, após Portnoy, começou a investir mais no aprofundamento psicológico de seus personagens. Mesmo Mirisola, em seu último livro, O Azul Do Filho Morto, parece estar dando uma guinada na mesma direção. Quanto a Cristiano Baldi, só nos resta esperar por seu segundo livro, que vai mostrar para que caminhos seu delicioso sarcasmo libertário o levará.
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