Clipagem


Publicado no site Capitu
Fevereiro de 2002
por Ricardo Guimarães Ishak

Petrificados no asfalto

Imaginem, e esse é o propósito de todo contador de histórias, que a literatura é um copo com água dentro. Pois bem, muitos escritores misturam açúcar com a água para dar a esta um sabor, sem necessidade, mas um sabor. Muitas vezes ultrapassam o limite da saturação e depósitos de açúcar se acumulam no fundo do copo. Este livro poderia muito ser um copo com água. Poderia. Mas imaginem que o copo não precisaria ser preenchido com água. Pensando bem, imaginem que nem precisaríamos de copo. Por fim, imaginem que não precisaríamos de nada. E assim nasceu este livro. Podem imaginar uma sala vazia? Então imaginem que somente vocês sabem que esta sala está vazia. As outras pessoas, que estão na sala que vocês sabem estar vazia, não sabem disso. Vocês têm que avisá-las. Berrem. Gritem. Saiam daqui pois esta sala está vazia! Mas muitas delas não lhes ouvirão. Elas continuarão preenchendo a sala vazia. Estas são as pessoas de vidas cegas.

Joana, Fábio, Batista, Carolina, Jesus, Leo, Jairo, França, eu, vocês e até mesmo o Presidente. Não há limites para o ser humano quando deseja ser algo além de seus próprios limites. Ou, ainda que não querendo, quando os limites dos outros se sentem no direito de invadir os limites de cada qual. Ou ambas as situações, talvez. No fim das contas, não acabam restando muitas opções, de qualquer maneira. Cabe a cada um embarcar sozinho em seu respectivo calhambeque e rumar ao norte. Ou furar seus próprios pneus e ficar estagnado no acostamento, petrificado no asfalto, a espera de um guincho amigo que nunca chegará para reboca-lo. Resumidamente, é isso o que especialistas chamam de vida. Já o gaúcho Marcelo Benvenutti, por sua vez, optou por defini-las como Vidas Cegas. E decidiu escrever um livro homônimo contando as histórias de algumas dessas vidas. E o volume acabou sendo publicado pela editora Livros do Mal.

Sobre o autor, o jornalista e escritor e colunista social nas horas vagas Fausto Wolff se limitou a afirmar que é um dos melhores da nova geração. Quiçá o melhor. Segundo o próprio, como está registrado na orelha da publicação, não passa do “maior mentiroso que já escreveu em qualquer língua. Ele não é um escritor. É um ladrão e assim deve ser tratado”. Lugar de ladrão é atrás das grades. Mas o que dizer de um ladrão literário? Não sou um crítico – graças aos próprios. Apenas um mero entusiasta que aprecia e sente prazer em divulgar a bela arte. E nesta condição, minha opinião é que, a criminosos tão talentosos como Benvenutti, somente é devido um destino: ficar confinado em bibliotecas pessoais, trancado a sete chaves, tendo os direitos de receber visitas constantemente e, de quando em quando, dar umas voltinhas pelas mãos de outros, cidade afora. Contanto que volte para sua cela assim como a deixou, sem problemas. Fosse ele, de fato, um ladrão. O mentiroso veio primeiro e é o adjetivo que prevalece sobre o restante seguinte. Como aquela velha piada que fala sobre a negação da negação.

E é sobre uma piada que vivemos. A tragicomédia que á a vida, onde os limites se confundem com as frustrações, e mentiras já não passam da mais pura verdade aos olhos dos que as contam. “A vida de Marcelo borracha apagando lápis de poesias de amor é uma mentira indefinida de paixões perturbadas e bêbadas. Tornou-se uma figura carimbada de suas próprias histórias fracassadas”. O personagem do conto A Vida De Marcelo, “um ser salsicha”, compreende o que digo. Ou, pelo contrário, há muito deixou de tentar entender, apenas vai protagonizando seu filminho pessoal automaticamente. O único risco que se corre é se encontrar com alguém que venha a duvidar de nossas vidas e desmoronar nossos castelos de cartas aos olhos dos outros. Pois há outros. Que também passam a acreditar em nossa farsa, como que num mecanismo de autodefesa em favor de suas próprias. E assim vai aumentando o número de incrédulos pacientes consigo mesmo e mais um livro é escrito. Benvenutti não é um ladrão. É um mentiroso. E construiu sua cidade sobre os alicerces do embuste.

Vítima e algoz, portanto. Vive da e na mentira que impõe e que lhe é imposta. “E chora sozinho mesmo que de seus olhos não corram lágrimas. As lágrimas não podem correr de seus olhos. As lágrimas só correm dos olhos das pessoas que querem fugir da tristeza. Ele se alimenta da tristeza”, eis A Vida dos Mortos. Não há muito que fazer a respeito da forma. O conteúdo é o que vale nessas ocasiões. A maior diferença entre o fast-food e o canibalismo consiste nisso. A praticidade das lágrimas em embalagens tecnicolor pomposas não suporta o peso da mentira, não suportam o calor do asfalto. O que importa, destarte, não é o valor da farsa, mas sua volubilidade. A negação da negação. Algo, inclusive, além do mero canibalismo, beirando a auto-antropofagia, um banquete onde todos se alimentam dos restos de todos, das misérias alheias construídas individualmente por cada dono de cada corpo e devoradas pelos mesmos. “A mentira sincera é aquela em que o mentiroso sabe estar incutindo em uma falsidade e o mentido (...) julga-se feliz por alguém finalmente reconhecer seus atributos e talentos”. A Vida do Gordo, de todos que pensam não sou assim tão importante a ponto de merecer páginas e páginas sobre mim. E nem estou disposto a perder meu tempo conhecendo novos farsantes tão profundamente. Diga-me o básico. Resuma. Uma página, no máximo duas por personagem é o suficiente. O resto, deixa que eu faço em casa, sozinho. Da tristeza deles eu já sei, já fui apresentado. Só me falta, agora, eu me alimentar. Eu, sozinho, da vivência dos outros. Da empatia que posso vir a sentir. Da minha própria dor. Desta minha Vida de Ator. “Atuar é mais que viver na própria mentira. (...) Atuar é viver nas mentiras alheias”. Preceito básico da sociologia. Cramir e frungir. Respectivamente, neologismos para acreditar e fingir que se ama.

E, para tanto, faz-se necessário um belo monte de coragem. De coragem para continuar “tateando no escuro”, transitando pelas tortuosas estradas da vida sem enlouquecer. Muitos não conseguem. Não por incompetência ou descaso, mas por inaptidão. Travestida em uma mentira. A mentira poética dos tolos que se iludem com as premissas de Baco ou um Kerouac torto. De tolos como Graziela: “Bebo porque gosto. Vivo porque gosto. A tristeza é um caminho feliz dos homens sábios. Na minha mente existe álcool e felicidade. Dor e felicidade. Tédio e amor esquecido. Todas as ordens foram esquecidas”. Tolos felizes em sua dor, em sua incapacidade de reverter o medo em sabedoria. Preferiram se debruçar no asfalto ao invés de resistirem aos buracos e solavancos das rodovias, tendo o vento como seu único e verdadeiro companheiro a enxugar-lhes os brotos de lágrimas que insistem em surgir nos cantos dos olhos. Não aprenderam, e nunca irão, que “o amor verdadeiro se chora em lágrimas secas, todas as noites, no escuro do esquecimento da vida de quem resistiu”. Quem poderá culpa-los? Quem poderá bater no peito e afirmar ter amado realmente? Não é porque alguns tiveram a coragem de sair mundo afora que receberão os louros da vitória. Ninguém os receberá. A felicidade, enfim, não existe. O que existe é tão-somente a segurança da beira da estrada ou a inconformidade sobre quatro rodas.

Conto número 61. A Vida da Pausa. “Não concebo o amor como também não admito o ódio. Esse teu maniqueísmo, Marcelo, é que faz com que as pessoas sintam-se infelizes. A idéia da felicidade traz a dor. Não existe felicidade. Não existe lógica. Existem apenas as vidas cegas. Tateando no escuro. Procurando o sentimento perdido. O olhar da criança. O olhar”. Que ainda não conheceu um copo, mas que ainda vai quebrar algum. Que ainda não descobriu que a água realmente não tem gosto. Que ainda descobrirá que o gosto da água varia de casa para casa. De bairro para bairro. A maior referência de qual status social ocupará. Ainda que venha a passar o resto de sua vida em uma sala vazia e escura, povoada por milhares e milhares de outras crianças crescidas. E esquecidas pelo mundo. E, no escuro da sala vazia, começarão a fantasiar uma luz. E desta luz saíra uma estrada. E, nesta estrada, a criança crescida decidirá sua sorte. Sozinha. E a esta luz dará o nome de felicidade. À estrada, de A Vida Feliz. “O amanhã que adivinha na madrugada não previne os sonhadores das conseqüências de seus delírios”. E poderão terminar, para sempre, petrificados no asfalto.