Clipagem


Revista Carta Capital
17.10.2001 - Edição 161
Plural/Livros - pág. 63
por Marcelo Träsel

Prosa gaúcha sem sotaque
Jovens autores lançam editora independente e mostram
uma nova face da literatura pop.

O que anda escrevendo a geração que se criou escutando Nirvana, assistindo a filmes de Tarantino e lendo textos direto na internet? Parte da resposta está em Ovelhas que Voam se Perdem no Céu, de Daniel Pellizzari, e Dentes Guardados, de Daniel Galera. Os dois títulos são os primeiros lançados pela editora Livros do Mal, criada pelos Daniéis, mais Guilherme Pilla, artista plástico responsável pelo trabalho perturbador nas capas. Diagramação, projeto gráfico, revisão, a página da Livros do Mal na rede, tudo feito pelos três editores, que têm entre 22 e 27 anos. A edição foi paga do próprio bolso e financiada em parte pela Secretaria de Cultura de Porto Alegre. No melhor estilo faça-você-mesmo.

Os contos chamam atenção pelo cosmopolitismo. Não há uma preocupação em "mostrar a cara do Brasil". São histórias de referencial urbano, que poderiam se passar em Xangai, Nova Iorque ou Berlim. Os dois autores, na casa dos 20 anos, começaram publicando seus textos na rede e mantiveram sites de literatura pioneiros, como a Proa da Palavra, de Galera, e Quatro Gargantas Cortadas, de Pellizzari, um dos primeiros experimentos literários com hipertexto no Brasil.

Galera explicita em seus contos as raízes eletrônicas, tratando principalmente de relacionamentos e adicionando citações a bandas, filmes e livros, o que se convencionou chamar na internet de literatura pop - de que Nick Hornby é o expoente. Ao contrário de grande parte dos escritos do gênero, no entanto, os contos de Dentes Guardados primam pelo estilo preciso, seco e nenhuma concessão à pieguice. Sua visão do amor romântico é de um ceticismo pavoroso, como no conto A Escrava Branca, uma crítica à submissão feminina. Quando o personagem tenta alçar sua mulher a uma posição igualitária na relação, ela não aceita a responsabilidade. Os times se invertem em Amor Perfeito, com o desprezo da personagem pelo homem que dá a ela sempre o que ela quer. Galera prefere trabalhar o conteúdo em vez de se dedicar a rupturas formais, capturando momentos de introspecção e epifanias de suas personagens.

Os contos de Daniel Pellizzari avançam no experimentalismo, utilizando-se de formas narrativas inesperadas, para catalisar o absurdo de suas histórias - pessoas que devoram a si mesmas, ou um churrasco de bebê para o jantar de aniversário da esposa. O objetivo é ressaltar a tragédia das vidas comuns de funcionários de escritórios e corporações. Borges e Cortázar estão presentes em contos como A Fronteira no Fim do Mundo, O Vôo das Ovelhas e Arnaldo e os Moinhos. Neles, Pellizzari cria universos a partir do inconsciente humano e os sobrepõe ao material, carregando-o de ainda mais realidade. Assim como Galera, não pinta um retrato bonito do mundo. As esperanças são poucas e estão no indivíduo, não na sociedade.

Esta visão cética toma a forma de ironia quando se observa o idealismo do trio porto-alegrense ao montar a Livros do Mal. Com pouco dinheiro e ajuda dos amigos, pretendem arejar a literatura brasileira. A princípio, os livros serão colocados à venda em pequenas livrarias de algumas capitais e vendidos pelo correio. O retorno será utilizado para editar outros títulos, a partir de 2002. Segundo Pellizzari, já estão acertados com um escritor, que pede sigilo. O critério é ser diferente. "Queremos dar espaço a autores novos e bons, que tratem de temas ousados, apresentem visões ou estéticas novas, além do lugar-comum de classe média que grassa no conto contemporâneo", define Galera. Se os dois são uma amostra significativa de sua geração, o mercado editorial guarda boas surpresas para os próximos anos.