Clipagem


Claque
Por Rodolfo S. Filho


Resistir e Desistir

Um homem isolado num apartamento de décimo sétimo andar quase vazio, tendo como preocupações beber, fumar e manter-se assistindo a vida em Porto Alegre passar por suas janelas sem participar dela. Suas únicas companhias são Churras (um cachorro) e Marcela (uma modelo) que aparecem de vez em quando – os dois encontrados por acaso e mantidos sem muitos cuidados.

Este é o ponto de partida de “Até o Dia em que o Cão Morreu”, o segundo livro de Daniel Galera, primeira narrativa longa do autor e sétimo título no catálogo da editora independente gaúcha Livros do Mal.

Apesar de ter uma premissa bastante familiar e um tanto batida – jovens meio perdidos no mundo – “Até o Dia em que o Cão Morreu” foge das fórmulas do “gênero”. Em primeiro lugar pelo seu protagonista, que não se julga especial ou tem grandes sonhos. Ao contrário do irritante Holden de “O Apanhador no Campo de Centeio” (J. D. Salinger) ou da chatíssima Camilla de “Máquina de Pinball” (Clarah Averbuck), o protagonista sem nome de Galera não tem nenhuma pretensão ou ambição além de se manter o mais distante possível das pessoas.

Sem monólogos filosóficos, o livro – narrado em primeira pessoa – conta a história de alguém que simplesmente desistiu por não ver muitos motivos para continuar. Empregos, família, amigos, amores, livros... tudo isso é supérfluo.

O segundo ponto que diferencia “Até o Dia em que o Cão Morreu” dos seus semelhantes é a prosa de Galera. Extremamente precisa e sem adornos desnecessários, ela parece reduzir o espaço disponível para a vida interior do seu personagem, que simplesmente conta o que lhe aconteceu e como ele reagiu. Qualquer reflexão mais profunda vai para as margens e as entrelinhas – o que só torna o texto mais forte, apesar da banalidade da maioria das situações. É através da subtração dos elementos desnecessários que, como nos seus contos, o autor indica que seus personagens são mais profundos do que o texto nos mostra.

Preguiça

Não há um conflito estabelecido em “Até o Dia em que o Cão Morreu”. Os elementos e personagens vão simplesmente se acumulando, sem nenhuma razão ou progressão aparente. Os sucessivos – mas escassos – encontros entre os personagens vão oferecendo ao leitor alternativas à desistência do dono de Churras. Mesmo que fiquem indícios de que há boas razões para o desânimo que esmaga devagar o protagonista da novela, fica claro que ela não trata de apatia ou depressão, mas de algo mais profundo.

Assim como em “Preguiça” (João Gilberto Noll), a desistência do personagem é uma estratégia de resistência ao mundo, exigindo um esforço constante muito maior que o necessário para se enquadrar e ser alguém na vida. Reduzir as expectativas, se centrar no que é importante – mesmo o importante ainda não tenha sido identificado – este é o ethos dos protagonistas de ambos os textos. Ethos que parece ecoar com o de Galera – e com o do seu companheiro de editora Daniel Pellizzari.

Infelizmente para quem só quer ver a vida passar, o protagonista do livro encontra Marcela, em muitos aspectos sua antítese. Modelo que odeia a profissão, cheia de projetos para o futuro e totalmente integrada no mundo do qual seu amante caiu, é ela – e alguns episódios que ela protagoniza – que forçam o personagem sem nome a lidar com seu torpor.

Galera escreveu um livro otimista, evitando julgamentos e mensagens pretensamente edificantes. Contemporâneo sem cair na citação de bandas e produtos que aflige a literatura de muitos dos seus colegas de geração, “Até o Dia em que o Cão Morreu” é um exame sutil e muito bem feito das opções que são exigidas de pessoas de uma certa idade, quando integração e desistência são alternativas igualmente válidas.