Clipagem
Digestivo Cultural
O dia 1º de outubro de 2001 foi a data que marcou oficialmente a estréia da Editora Livros do Mal. Mas não só isso. Junto com a criação da editora, vinha todo um projeto literário embalado pelos próprios editores (também os primeiros autores a escoarem a sua produção). Os escritores em questão são Daniel Pellizzari e Daniel Galera. A Livros do Mal é formada, além do dois, pelo artista plástico Guilherme Pilla - parceiro desde os tempos em que estes dois autores começaram a se tornar conhecidos através de seus escritos pela Internet -, hoje responsável pela maioria das ilustrações da editora. A localidade é Porto Alegre, mas poderia ser em qualquer parte do mundo, porque foi através de um fanzine via e-mail – o Cardosonline, que chegou a contar com cerca de 5 mil assinantes - e foi ponto de partida para muitos outros fanzines que surgiram depois –, que esta dupla começou a firmar o pé no que hoje convencionou-se chamar de "literatura web" ou coisa que o valha. No entanto, é importante que denominações banais como essa sejam abandonadas, uma vez que, em função desta necessidade desesperadora de se criar nomes para cada dito “fenômeno” que surge, muitas injustiças são cometidas. Isto porque a Internet foi somente um meio experimental que os autores encontraram de – além de tornar seus nomes conhecidos com a facilidade de divulgação proporcionada pela rede – fazer experimentações que pudessem lhe proporcionar o punch necessário para, enfim, encarar o querido e tradicional formato do livro, longe dos HTMLs da vida, onde qualquer autor de blog hoje se considera escritor. A forma que os "daniéis" encontraram para imprimir em papel a sua produção literária foi diferente da comumente empregada por muitos escritores em começo de carreira: nada de imprimir cópias dos livros e mandar indiscriminadamente para todas as editoras do país e ficar à espera de algum retorno. Tendo consciência da sistemática enlouquecida da literatura comercial – em que quem não é conhecido não é publicado porque não vende e, logo, se não vende, não é publicado, e, portanto, nunca se tornará conhecido – os autores, que afirmam nem ter chegado a mandar seus originais para análise, resolveram tomar desde o começo o rumo de todo o projeto. Apresentaram, em vez disso, uma proposta para concorrer dentro de um programa de financiamento cultural da prefeitura de Porto Alegre, o Fumproarte. Agraciados com o primeiro lugar geral, tiveram seus primeiros livros custeados em parte e deram forma, então, à Livros do Mal. De cara, o nome pode até soar um tanto negativo para aqueles acostumados à literatura empertigada das academias. A explicação, entretanto, pode muito bem estar presente no conceito de George Bataille, teórico francês, além de novelista, responsável pelo volume de ensaios A Literatura e o Mal, de onde este conceito é retirado (além do fato de que a explicação também pode estar impregnada de alguma piada interna que os autores porventura estiveram interessados em criar): "A literatura é o essencial ou não é nada. O Mal, uma forma penetrante do Mal, de que ela é a expressão tem para nós um valor soberano. Mas esta concepção não impõe a ausência de moral, exige uma hipermoral". A partir daí já se tem, mais ou menos, uma idéia da proposta da editora: fugir do convencionalismo, publicar textos com abordagens e/ou estilos diferentes dos encontrados na literatura atual. Fora todas as qualidades conceituais buscadas, a possibilidade de assumir desde o projeto gráfico dos livros até a distribuição e outros elementos inerentes ao trabalho editorial, foi outro adendo que influenciou na determinação de criar a Livros do Mal. Os primeiros produtos do trabalho destes dois "daniéis" não poderiam ter estreado de maneira mais benéfica. Dentes Guardados, de Daniel Galera, e Ovelhas que Voam se Perdem no Céu, de Daniel Pellizzari, livros de contos, repercutiram com bastante estrondo na imprensa nacional. Entrevista na GNT, matérias nas revistas Época e Bravo!, artigos na Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Zero Hora, entre outras publicações, além da publicação dos livros na Itália, foram os indícios de que o resultado de um trabalho consistente e pretensiosamente diferenciado na literatura estava sendo reconhecido. A literatura apresentada pelos dois escritores encontra-se revestida de embasamento e forjada por grandes noções literárias, com influências de autores consagrados, como Tchecov, Kafka, Hilda Hilst, Joyce, Cortázar, entre outros. O que, longe de parecer recurso barato de comparação, mostra uma densidade cultural em escrevinhadores que não se aventuraram na difícil arte das letras como simples diletantes. Buscou-se uma literatura consistente e avessa à representações geográficas e temporais – como os clássicos romances históricos tão profusamente produzidos no Rio Grande do Sul. Desde a primeira linha de cada um dos livros de estréia (“Ele tirou a minha virgindade”, de "Amor Perfeito", primeiro conto de Dentes Guardados e “Fizera amizade com as aranhas que viviam no banheiro de sua nova casa”, do conto "Teias", de Ovelhas...) o que se nota é a necessidade de provocar reações no leitor. E não precisa ser de identificação, porque os contos nem sempre e não necessariamente primam pela proposta de ser esteticamente agradáveis. Espanto, desconforto, repulsa, nojo, paixão e até identificação. Seja qual for o sentimento provocado, o que se observa é a necessidade de fugir da classificação de literatura de entretenimento neste já tão saturado mundo de diversão em que estamos tão poluidamente inseridos. Afinal, quem precisa de mais subprodutos alegóricos para enfeitar estantes ou se encaixar em panteões junto aos cânones consagrados e bajulados em academias e “festejados” festivais literários? A audácia talvez seja a forma mais admirável e pouco vista nos lançamentos literários que despontam aos borbotões a cada ano. Ainda que a pretensão dos autores não seja absolutamente de revolução, ou qualquer atitude tão extremada que, ingenuamente, se pense ser capaz de modificar o status quo, a literatura vigente (através dos bons e exigentes leitores) agradece quando autores resolvem dar a cara para bater e fogem do estabelecido através de iniciativas recheadas de audácia. Audácia que, acertando ou errando, também pôde ser comprovada em maior e menor grau nos livros seguintes lançados pela editora: Vidas Cegas, de Marcelo Benvenutti, Ou Clavículas, de Cristiano Baldi e Húmus, de Paulo Bullar. Na seqüência, ainda vieram O Livro das Cousas que Acontecem, segundo título de Daniel Pellizzari e Até o Dia em que o Cão Morreu, estréia de Daniel Galera na narrativa longa. Mas, afinal, onde se representaria esta tão desejada audácia? Em inovações formais, em temáticas incongruentes, em invencionices lingüísticas? Talvez em tudo isto e talvez em nada disto. Não há, afinal, desejo de acerto, mas muitas e muitas tentativas: a provocação e o questionamento se estabelecem na proposta da editora como produtos para destoar da literatura produzida até então, da literatura pronta e mastigada, estabelecida como modelo clássico e engessado. Muitas vezes, ainda que não se queira, o acerto está mais na contemplação dos hábitos tidos como socialmente aceitáveis nas pessoas comuns, do que na descrição das bizarrices cotidianas de sodomitas enlouquecidos. E aí está a mágica: a banalidade às vezes pode ser o mote inicial da ânsia de se apresentar propostas diferenciadas e discordantes do que está estabelecido. E propostas desse tipo serão sempre bem-vindas. Crítica Dentes Guardados, Daniel Galera, 88 págs. A prática que a publicação regular na Internet proporcionou a Galera nos livrou de encontrar em seu livro de estréia vícios comumente encontrados em escritores que se aventuraram pela rede – ainda mais embrenhando-se pelo conto, pequena grande pérola da literatura, onde o timming é tão necessário quanto o impacto. A narrativa é simples, não se encontra aqui grandes pretensões de revolução lingüística, o que torna ainda mais difícil a tarefa de contar boas histórias sem cair na banalidade. É a simplicidade que dá a tônica em um livro que conquista gradativamente, com personagens identificáveis e reconhecíveis em qualquer submundo urbano. Da introdução através de um defloramento, em "Amor Perfeito", passeando pela eterna incomunicabilidade dos relacionamentos em "Intimidade", vai-se caminhando para um crescendo que atinge o estranhamento em "Natureza Morta" – lento relato de uma noite de envolvimento de um jovem com uma “coroa”. O livro atinge o ápice nos contos "Triângulo" e "Escrava Branca". O primeiro põe por terra clichês convencionais em triângulos amorosos, com uma alternância de narradores e controle narrativo difíceis de encontrar em livros de estréia. Já "Escrava Branca" é direto como o anúncio colocado pelo narrador: se o que se quer é a praticidade de uma relação de benefício para ambas as partes, mesmo cerceada pelo mercantilismo de uma prestação de serviços sexuais, o resultado nem sempre está sob controle afetivo e o final pode não ser muito agradável. De dispensáveis "Os Mortos de Marquês de Sade", relato desinteressante sobre as aventuras de jovens em uma comunidade onde os adultos se comunicam exclusivamente em alemão e, até pelo fato de ser narrado em primeira pessoa, denuncia quase claramente algum episódio no qual o autor tomou parte. Por fim, "Será numa Quinta-Feira" seduz pelo tom agradavelmente poético que permeia todo o texto, mas decepciona pelo caráter quase de crônica que, por final, o texto acaba apresentando. No entanto, são pequenas irregularidades que, em momento algum, minimizam a qualidade deste ótimo trabalho de estréia de Daniel Galera. Ovelhas que Voam se Perdem no Céu, Daniel Pellizzari, 88 págs. O que mais surpreende no livro de estréia de Daniel Pellizzari é realmente a facilidade de se encontrar estranhamento e anti-convencionalismo em cada texto. Percorrendo um tortuoso mundo de estupefação ante as bizarrices diárias a que estamos todos expostos, Pellizzari não apresenta necessariamente moral em suas histórias: as coisas acontecem em seu estranhamento porque simplesmente têm de acontecer. Daí uma estranha relação entre um proprietário de apartamento e suas aranhas, o que acaba contribuindo para que bebês comprados em sinais de trânsito, e assados para um jantar romântico, não sejam assim a coisa mais inusitada do mundo. O bom neste livro é isso: a tamanha naturalidade na narração de estranhezas, em que passamos a crer; não nos achamos, portanto, nem "superiores" nem "indiferentes". "O vôo das Ovelhas" é um exemplo nesse sentido: talvez a normalidade esteja naquele que busca, através da loucura, alguma réstia de vida social. E os loucos talvez sejam aqueles espalhados em cada esquina, a vender vales-transportes e relógios do Paraguai. Mas nem só de bizarrices se faz um livro como Ovelhas.... "Jardim de Infância" é uma deliciosa historieta que percorre a ingenuidade infantil e encontra doce justificativa nas ações de uma menina de quatro anos. "Um Hamster" consegue tornar tal roedor um narrador de seus tristes dias em uma gaiola, "Gravidade" torna comum o vislumbre de gatos, vacas e velhas que despencam, sem explicação, do céu. É sensacional que o conto mais bem acabado do livro o feche: "Ponto de Fuga" faz um homem desaparecer por inteiro, se engolindo pela boca e ânus e dando adeus aos seus dias de ovelha sem nem mesmo um bilhete de despedida. Vidas Cegas, Marcelo Benvenutti, 176 págs. 69 são as vidas apresentadas em pequenas narrativas aqui, por Benvenutti. Não necessariamente as vidas de 69 pessoas. Ainda que comece relatando a vida de Jonas, de Joana, de Ernesto, de Ulisses, entre outros, em dado momento Benvenutti parece ter se cansado de tantos pequenos personagens e enveredado pela "vida do Ator", "do Bar", "das Mulheres Chuvosas" e até "do Amor". O resultado não é dos mais felizes, porém. Ainda que o autor acerte em alguns momentos, a sensação que fica é a de experimentação constante. Coisa não muito indicada para o formato livro, já que Benvenutti teve e continua tendo a sua trajetória de "experimentador" através dos fanzines A Folha Mutante, TV Eye e atualmente K Zine. Não vamos dizer que o resultado seja de todo ruim; o problema maior é o excesso de minibiografias sem qualquer densidade, facilmente esquecíveis e com um ou outro acerto mínimo que faça valer a pena voltar à página e reler. Marcelo Benvenutti escreve bem. Tem a manha e o jeito de escritor romântico; brinca de narrador com suas observações recheadas de argúcia; chega a apresentar situações interessantes como em "A Vida de Fábio" (relato das atuais relações digitais em meio a um mundo parado por pessoas dormindo em todos os cantos). O problema é que, salvo uma ou outra história, ou alguma solução originalíssima encontrada por Benvenutti, o resultado é cansativo, já que algumas histórias parecem ter encontrado suas soluções devido ao próprio cansaço do autor. Ou Clavículas, Cristiano Baldi, 112 págs. Cristiano Baldi é um engraçadinho. O que pode ser bom ou ruim dependendo do tipo leitor que ele encontre pela frente. O fator positivo é que o próprio autor parece não se levar a sério e brinca o tempo todo com uma densidade tão desgastante de escatologia e sexo sem finalidade, que ele caracteriza de uma maneira certeira os escritores que abundam em blogs nesta geração interneteira. Sua fixação por "punheta", "pau" e "buceta" chegam aos limites do absurdo. É um escritor pop no sentido mais vulgar da palavra, já que recheia seu texto de citações ordinárias que vão desde a Avon até o Fantástico, passando por lojas Renner, Madonna e até Fábio Junior. Debocha sem constrangimento de judeus e católicos, e trata os ordinários como seus parceiros mais constantes. Se dá bem, entretanto, em alguns momentos: quando se sente que a labuta do moço sobre o texto foi bem maior. "Meia Briga e Alguns Poemas" atinge tamanha frivolidade que até alcança alguma densidade. "Boa Festa" tem uma solução nonsense de uma qualidade considerável. É, enfim, um escritor em começo de carreira com uma grande caminhada pela frente. Livrando-se dos ranços adolescentes, conseguirá desenvolver textos mais bem acabados e também mais dignos de publicação. Húmus, Paulo Bullar, 104 págs. Bullar se fixa no mundo animal neste seu livro de estréia. Apresenta-nos os elefantes, girafas, macacos, ratos e cágados arteriais, que passeiam sem muita finalidade na descrição de uma floresta e de seus habitantes. Um pouco mais além, encontramos os humanos. Se os seres humanos não se relacionam com os animais propriamente ditos, têm o mesmo comportamento deste e caminhando para uma maior identificação. Em "A Filha da Vaca", por exemplo, o autor retrata a ordinária condição (biológica?) da mãe da personagem principal. "Abominável Humano" põe uma mulher a botar ovos de lagarta. São textos vagarosos e curtos, cujo ponto positivo é causar certa estranheza e lançar um olhar diferenciado sobre a natureza humana. O Livro das Cousas que Acontecem, Daniel Pellizzari, 115 págs. Este livro é a certeza definitiva de saber que Pellizzari se encontra em território seguro ao transitar por temas que podem beirar a esquisitice e o mondo bizarro. As histórias não precisam de explicação, não são cheias de moral, não tem um porquê. O sêmen pode ser a doce redenção de um limpador de cabine de sex shop, da mesma maneira que pode ser a marca a ser deixada pelos imóveis visitados por um divorciado à procura de um apartamento. Metarrealismo é, realmente, a melhor definição para designar o perturbador mundo destas cousas todas, ainda que revestidas por bastante sensibilidade, e que acaba por nos levar aos limites das sensações: o nojo, o absurdo, o irreal adquirem feições verossímeis. A descrição do fantástico não é tarefa para qualquer um, encontrou ícones como Kafka, García Márquez e Cortázar. No Brasil, Campos de Carvalho e Moacyr Scliar também passeiam com certa desenvoltura por esse universo. Daniel Pellizzari o acolhe com o carinho e o respeito necessários, sem medo da ousadia e da decepção. Tamanha é a “possibilidade” de realização dessas fábulas que o tom geral é quase jornalístico. As histórias contadas aqui funcionam como um casaco virado do avesso: é preciso a estranheza das costuras aparentes, dos bolsos revirados, para se dar conta do "outro lado", que não é assim tão essencialmente correto. Até o Dia em Que o Cão Morreu, Daniel Galera, 128 págs. Existe algum mal em comprar um livro que em meia hora você terá terminado de ler? Por que? Porque a trama é tão envolvente que você precisa saber onde aquilo vai dar; nem que isso represente se atrasar para um compromisso que você tinha marcado. Afinal, do que se precisa realmente hoje em dia? Terminar um livro, ter um emprego, um apartamento vazio, um cachorro e um sexo eventual? Estas perguntas acabam percorrendo nossa mente enquanto não chegamos ao final de Até o Dia em que o Cão Morreu, estréia de Daniel Galera na narrativa longa. "Narrativa longa" é a melhor descrição e talvez a única, porque aqui não temos propriamente um romance, mas simplesmente uma história em que o que é preciso ser contado é. O que sobra são indagações tão valiosas quanto as que nos fazemos todos os dias. Recém-formado em letras, o narrador da história, de quem nunca ficamos sabendo o nome, mora em um apartamento sozinho no centro de Porto Alegre, onde a vista para o Guaíba parece ser o que de mais seguro ele tem. O resto é a eterna sensação de solidão e de distanciamento do mundo, mesmo daqueles que lhe parecem mais perto. Como Marcela, uma modelo que surge em sua vida e que, mesmo repleta de beleza e viço, não afasta o protagonista de uma cantilena de auto-destruição, embalada por doses maciças de álcool e cigarro. Por quê? Porque simplesmente ele não vê sentido em buscar um "sentido" para a vida. A sua falta de jeito (talvez o seu principal problema) não o impede, porém, de encontrar meiguice num cão vira-latas – a quem chama de Churras –, recolhido quando voltava para casa. O tom, quase sempre de contemplação, acaba servindo como a resposta que não se tem às mínimas questões práticas da vida.
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