Clipagem


Revista Época
11 de fevereiro de 2002
por Paulo Roberto Pires

Prosa sem travas

Dentes guardados e Ovelhas que voam se perdem no céu marcam a estréia de dois autores novos, Daniel Galera e Daniel Pellizzari, jovens (23 e 27 anos) que lançam uma editora (a Livros do Mal) para escoar a produção que há alguns anos derramam na Internet. Seu principal trunfo é mostrar como "novo" pode passar de adjetivo a substantivo: uma prosa sem travas mas livre de espontaneísmo, radicalmente urbana (ambos vivem em Porto Alegre) sem se melar com o realismo jornalístico, culta na medida de evitar literatice, curta como sugere a velocidade do tempo em que vivem.

Em maior e menor grau, são livros imperfeitos e nesta imperfeição está uma de suas virtudes, pois suas arestas são produto de vigor e sinceridade Temáticas e linguagem de um e outro em nada engrossam o mainstream da ficção contemporânea brasileira, em geral reverencial à mesma meia-dúzia de "grande nomes", ansiosa por se atrelar à TV ou ser ungida por um crítico universitário em alta, dependente demais de um mercado que acaba ditando caminhos sem, no entanto, cumprir como deveria seu papel de fazer circular livros e compensar financeiramente o escritor. Se não determina uma estética ou gera talentos mecanicamente, a Internet tem aí influência decisiva: na rede, escrever o que se quer e bem entende é mandamento número um. Ser lido, a única compensação.

Nos 19 contos de Ovelhas que voam se perdem no céu Daniel Pellizzari mostra sua voracidade literária: "Tango sobremesa" é uma mórbida farsa rodriguiana, "Um hamster" brinca com o ponto de vista narrador, "História de amor número 17" exercita o grotesco, "Gravidade" evoca Cortázar em seu fantástico estropiado. Esta diversidade de enfoques e formas impede uma unidade de estilo na mesma medida em que faz pensar sobre uma profusão de referências cultas que aqui já não é a ironia pós-moderna. A melhor imagem para definir esta cabeça não é a colagem, mas o mecanismo de busca, a possibilidade de eleger suas afinidades livremente numa rede de possibilidades infinitas.

Daniel Galera anda no fio da navalha da ficção e confissão. A começar pelo título, tirado de Hilda Hilst, Dentes guardados estabelece diálogos com a tradição literária, mas cada uma das 14 histórias é atravessada por referências ao cotidiano de jovens intelectualizados e saudavelmente insatisfeitos com a vida. Isso se manifesta, é claro, em situações, mas principalmente no bom ouvido de Galera para registrar o coloquial sem descuidar da forma. Seus personagens são facilmente reconhecíveis, mas não decalcam a vida: são, por tudo isso, solidamente literários.

Em seus melhores momentos, Dentes guardados retoma, sem redundância, os conflitos da masculinidade na ressaca do "liberou geral". Já que pode tudo, o que realmente se quer? "Escrava branca" pode horrorizar feministas, mas desarma habilmente todos os clichês, assim como o agridoce "Triângulo". A festa do sexo é levemente melancólica e não é raro que homens fujam de mulheres, movidos por perplexidade ou medo como em "Natureza morta" e "Alguma psicologia".

Os Daniéis e seus Livros do Mal estão aí para mostrar que juventude não é a coleção de clichês da publicidade ou das pesquisas de comportamento. É algo infinitamente menos limpo e harmonioso, cheio de irregularidades e vida como seus livros.