Clipagem


Folha de Londrina
13 de agosto de 2002
por Nelson Sato

Três autores na trilha do Mal

"A literatura é o essencial ou não é nada. O Mal uma forma penetrante do Mal de que ela é a expressão tem para nós, creio eu, o valor soberano. Mas esta concepção não impõe a ausência de moral, exige uma hipermoral".

O conceito, elaborado pelo escritor francês George Bataille no volume de ensaios "A Literatura e o Mal", está inspirando uma nova safra de escritores no Brasil. Três deles, todos jovens gaúchos de vinte e poucos anos, estão estreando no mercado editorial depois de uma badalada passagem pela Internet.

Daniel Galera traz a público a coletânea de contos "Dentes Guardados". Daniel Pellizzari debuta com "Ovelhas que Voam se Perdem no Céu". E Marcelo Benvenutti chega às prateleiras com "Vidas Cegas". Todos chancelados pela editora independente Livros do Mal, criada no ano passado pelos dois primeiros em parceria com o designer gráfico Guilherme Pilla para escoar seus textos.

A publicação contou com apoio da FUMPROARTE, um programa de financiamento cultural da Prefeitura de Porto Alegre. Os lançamentos têm sido aclamados pela crítica como um sopro de renovação na prosa contemporânea brasileira. Antes, todos eles ostentavam prestígio como pioneiros na criação de sites de literatura na web.

Durante algumas temporadas, mantiveram colunas no Cardoso Online (COL), um dos mais interessante fanzines eletrônicos da rede, que chegou a contar com 4.800 assinantes. Há quem já tenha detectado características da linguagem prosaica e ligeira da Internet na própria escrita dos escritores, o que eles negam. Num resumo grosseiro do que já se escreveu sobre os livros, sublinhou-se que suas narrativas revelariam em comum experiências e dilemas de personagens urbanos cosmopolitas. Explorando o tema das relações amorosas na maioria dos contos de "Dentes Guardados", Daniel Galera imporia uma tônica confessional que aproximaria seus personagens do que se convencionou chamar de "literatura pop" pelas menções a bandas, filmes e livros.

Em "Ovelhas que Voam se Perdem no Céu", Daniel Pellizzari enveradaria pelos experimentalismos formais prendendo a atenção do leitor com soluções inesperadas. Já em "Vidas Cegas", Marcelo Benvenutti reuniria 70 parábolas enfeixadas em títulos como "Vida de Jonas", "A Vida De Paulo" e "A Vida dos Mortos". O sucesso dos livros já extrapola as fronteiras nacionais. Uma editora de Milão acaba de adquirir os três títulos com a promessa de traduzí-los e publicá-los na Itália ainda esse ano. No Paraná, os volumes estão à venda nas livrarias Curitiba, da Capital. Podem ser encomendados também no próprio site da editora: www.livrosdomal.org. A seguir, leia entrevista com Daniel Galera.



"Nunca enviamos nossos originais para as editoras"

Daniel Galera fala sobre os textos publicados pela Livros do Mal e a opção pela internet

Qual é a proposta da Livros do Mal?
Publicar livros, de preferência de autores originais, que contribuam para a renovação da literatura nacional.

Quando vocês escreviam os livros, já planejavam publicá-los por uma editora própria ou pensavam primeiro em mandar os originais para as editoras estabelecidas?
Durante todos os anos que publiquei exclusivamente na internet, nunca tirei de mente a intenção de publicar meus textos em livro. Meu primeiro livro é uma coletânea de textos publicados anteriormente na rede, e o mesmo vale para o livro do Pellizzari. Nunca enviamos nossos originais para editoras, decidimos fazer tudo sozinhos logo de cara, por diversos motivos - a obsessão por controle e o prazer em editar livros são alguns deles. Contamos com apoio do FUMPROARTE, um financiamento cultural da Prefeitura de Porto Alegre, para imprimir nossas primeiras edições e lançar a editora Livros do Mal.

Vocês estão lançando um novo autor Marcelo Benvenutti. A editora já está empilhando originais de outros escritores novatos? Como está o nível dos textos?
Estamos recebendo até meia dúzia de originais por mês. Não nos importaríamos de receber ainda mais. Até agora, um pequeno punhado deles nos chamou a atenção, mas apenas dois estão encaminhados para uma provável publicação entre o fim deste ano e o meio do ano que vem. Os outros têm alguns problemas, ou são francamente ruins.

Há algum critério específico para selecionar os autores a serem publicados pela Livros do Mal?
Não há critérios muitos específicos mas, de forma geral, não estamos interessados em literatura de mero entretenimento, ou textos que não ultrapassam seu apelo comercial. Queremos publicar textos originais, com idéias novas, que não venham simplesmente a engrossar os lugares-comuns literários que já existem por aí.

Como anda o panorama literário brasileiro. Há escritores instigantes, ou todos estao acomodados em fórmulas desgastadas? Que autores vocês sempre lêem?
Há vários escritores instigantes na cena nacional. Um favorito nosso é o Joca Reiners Terron, de São Paulo, cujos dois últimos livros, o romance "Não há nada lá" e o volume de poesia "Animal Anônimo" são excelentes e muito originais. Joca também é o editor da Ciência do Acidente, editora independente que nos influenciou bastante na concepção da Livros do Mal. Na internet, há o pessoal que escreve no fanzine "K", de Salvador: Patrick Brock, Paulo Bullar, Mariana Messias, Mariana Bandarra, Wladimir Cazé, e o próprio Marcelo Benvenutti, do qual lançamos o "Vidas Cegas".

Vocês fazem parte de um novo fenômeno na literatura brasileira, que é o fato de terem começado a escrever na web. A tentação jornalística de classificá-los como a "geração internet da literatura verde-amarela" é grande... Mas o que, afinal de contas, significa isso? Existe uma linguagem específica na rede? O que a caracteriza? Seria ela uma das responsáveis pelo sabor de novidade que os críticos estão detectando nos títulos da Livros do Mal? Que lugar, enfim, vocês atribuem à internet em termos de escala de importância para a renovação da literatura?
Não creio que, no momento, a internet possa ser responsabilzada pelo surgimento de uma "nova linguagem" ou algo assim. Mas não há dúvida que a internet promoveu um certo renascimento do interesse pela escrita, e por tabela da literatura. Antes de tudo, a internet oferece novas, baratas e fáceis opções de publicação e divulgação de textos, o que levou muita gente a escrever. No entanto, essa literatura praticada na web, em fanzines por e-mail, sites e weblogs, ainda não tem nada de fundamentalmente diferente em relação à literatura publicada em papel, a não ser o meio em que está sendo publicada. Isso não quer dizer que a rede não ofereça novidades e recursos novos, como os hyperlinks, que no entanto ainda não foram explorados com força suficiente para gerarem uma nova linguagem literária. A internet está, enfim, ajudando a colocar em ação uma geração nova de escritores que têm coisas diferentes a dizer, muitas vezes de maneiras muito originais. Um dos nossos objetivos com a Livros do Mal é ficar ligado nesse processo, pra tentar fazer algumas pontes entre autores surgidos na internet e a publicação em livro. Esse não é, entretanto, nosso único objetivo, queremos também publicar outros autores, de qualquer parte do país, que não tenham necessariamente tido algum contato com a internet em suas vidas.