Clipagem
Folha de São Paulo Autonomia de um conto Para além das vaidades e mesquinharias pessoais, é possível ver a literatura como uma espécie de empreendimento coletivo, um conjunto de tentativas individuais e aparentemente isoladas de alcançar algo que não se sabe bem o que é e de dizer o que não se conhece. Quanto mais tentativas houver, maiores as chances de acerto. E, se os acertos são raros, também são poucos os que têm discernimento para reconhecê-los, no caso de críticos e leitores, ou consciência do que estão fazendo, no caso dos escritores. É incrível, por exemplo, pensar que alguém possa não ver diferença entre Beckett e Paulo Coelho, embora a falta de discernimento não seja menos espantosa e grave nos equívocos de avaliação entre os diversos matizes que existem entre um extremo e outro. Quanto mais iniciativas literárias houver, maiores as chances de se compreender todas as dimensões e consequências dessas diferenças. A literatura depende dos parâmetros criados pela formação de um meio e de um repertório literário. A editora Livros do Mal, recém-criada por um grupo de jovens de Porto Alegre, é uma pequena contribuição, entre outras, para renovar o meio e o repertório literário brasileiro. São autores que começaram a publicar seus textos ainda muito cedo, na internet, como alternativa e exercício. Os dois primeiros livros da editora, lançados no final do ano passado, tem tanto de uma coisa como de outra. "Ovelhas que Voam se Perdem no Céu", de Daniel Pellizzari, e "Dentes Guardados", de Daniel Galera, são alternativos como iniciativa editorial e muitas vezes podem parecer exercícios de juventude do ponto de vista da literatura. Mas ambos estão investidos de uma noção literária básica para quem escreve contos hoje, depois de Tchecov, Joyce e Kafka. De uma maneira mais ou menos bem-sucedida, os dois não procuram explicar o sentido das coisas e não fecham seus contos com uma moral. Para além do que se passa fora dos livros (na militância editorial), porém, um tem pouco a ver com o outro. Em Pellizzari, 27, dois contos se destacam: "O Vôo das Ovelhas", cuja epígrafe de Fernando Pessoa indica ao leitor o tipo de literatura que o autor mais preza ("as coisas não têm significação; têm existência/ As coisas são o único sentido oculto das coisas"), e em especial o curto "Ponto de Fuga", provavelmente o texto mais acabado e preciso do livro (por ser, no seu tipo de humor, literalmente redondo). Em Daniel Galera, 22, há contos bons. "Os Mortos de Marquês de Sade", em particular, graças ao humor discreto ao narrar a visita de um grupo de jovens a um vilarejo gaúcho chamado Marquês de Sade, onde os adultos se comunicam "exclusivamente em alemão" e de onde os visitantes tentam trazer para casa, como lembranças, as lápides do cemitério. Há outros interessantes: "Subconsciente", "Amor Perfeito", "A Escrava Branca", "Manual para Atropelar Cachorros" e "Dafne Adormecida". E há um excepcional. Chama-se "Triângulo" e a sua qualidade talvez possa ser apreendida pelo fato de não se poder dizer nada (ou quase nada) sobre esse conto sem comprometê-lo ou estragá-lo. É um texto cuja autonomia é a sua condição. E isso é fundamental em literatura. Dá para dizer que "Triângulo" joga de uma forma traiçoeira com as pretensas identidades sexuais, com a relatividade dos desejos e dos objetos do desejo. Mas é pouco para defini-lo. O fato é que, ao pôr em questão as identidades sexuais, Galera ironiza por tabela o clichê da escrita de macho, aquela que se pretende mais autêntica por ser feita de suor e sangue. O autor se serve do estilo que pretende chegar mais perto da realidade ao falar duro -quando na verdade apenas mimetiza um maneirismo embrutecido e violento, que não é nem mais nem menos artificioso do que qualquer outro estilo que se decida usar para impor uma identidade- para confrontá-lo consigo mesmo. A graça de "Triângulo" é a relatividade que esse confronto revela. E a surpresa de um escritor estreante com consciência dos poderes subjetivos da literatura.
Dentes Guardados
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