Clipagem
Fraude Até o dia em que o corpo viveu Galera, mermão. Eu deveria te mandar este texto por e-mail. Mas quero que você o leia aqui, neste canto que a gente compartilha há quase um ano. Faço isso por uma série de motivos, entre os quais este é o mais relevante: há alguns dias, escrevi que sentia falta de vida em boa parte dos textos que lia por aí. Agora é a hora de repensar o POBREMA. Naquele texto me referia aos escreventes que continuam tentando entulhar minha cabeça de critérios, tradições, gerações, Bukowskis, métricas e o caralho a quatro. Estou de saco tão cheio dessas "práticas discursivas", desse patrulhamento estético, dessa luta por migalhas de autoestima, que já estava quase entoando o irônico coro de Nelson Rodrigues: "sejamos burros". Assim, Galera, ao ler orelhas e quarta-capa da sua primeira novela, Até o dia em que o cão morreu, me bateu um certo desconforto. Camus, Kafka, nomes e nomes. Quase que eu começo a escanear o livro buscando critérios e qualidades, querendo ter opiniões inteligentes, justificá-lo ou derrubá-lo como escritor. Mas você me deu um pé na bunda. Aquela vida que eu procurava estava lá. Com uma simplicidade segura, o texto se conectou diretamente com minha subjetividade e me fez esquecer de que eu tinha assuntos a resolver e pensamentos a formular. Isso é raro: um texto que o esvazia, que faz com que você deixe de ser cavalo de santo de milhares de teorias e se transforme em LEITOR. Textos que, de alguma forma, furam os ruídos. E já tive minha fase distanciamento, agora quero me perder nas entrelinhas. O envolvimento foi tão forte que eu quis escrever este texto num fluxo, pessoal, sem preocupação em convencer ou ser didático. Recentemente, o mesmo tipo de emoção me tomou ao assistir ao filme Samsara: o sentimento de "tudo a fazer". A vida zombando das nossas escolhas e nos empurrando pra situações inesperadas, prazerosas e, às vezes, quase insuportáveis. Mas aí você respira e, em vez do desespero, ri e diz: "me derrube se for capaz". Um jogo, uma dança. Seu texto, Galera, não apenas contém vida, força, vontade de expansão. Não tem a auto-piedadezinha, o cagaçozinho e a transgressãozinha de quem escreve pra posteridade. Pode ser até que você ainda acredite em posteridade – nunca te perguntei isso. Mas seu texto escapa do desejo por estantes e púlpitos e foge, indomado, pra discutir a atualidade no que ela tem de mais prosaica e, por isso mesmo, importante. Assim, Até o dia em que o cão morreu tematiza o corpo, nesta sociedade que tenta obsessivamente controlá-lo, extinguir as doenças, "equilibrar" os estados mentais, esterilizar as secreções. Uma sociedade que já incorporou as lições da eugenia, graças ao PAVOR de perceber o quanto o corpo foge dos controles que criamos. Eu não queria citar nomes e lhe imputar tradições, mas você sabe em que Batalha se alistou.
A merda é que eu não posso discutir o final do livro em público pra não estragar prazeres. Só posso dizer uma coisa: também ele é pura afirmação da vida, no que ela tem de mais concreto, as reticências.
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