Clipagem


30.09.2001
Danilo Fantinel e Bárbara Nickel
Interface
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Livros do Mal. Propósito do Bem
por Danilo Fantinel / Redação Terra
01 de outubro de 2001

Guigui, Galera e Mojo O projeto editorial Livros do Mal, idealizado e colocado em prática por Daniel Galera, Daniel Pellizzari (Mojo) e Guilherme Pilla, estréia no mercado neste 1º de outubro com o lançamento dos livros Dentes Guardados (Galera) e Ovelhas que Voam se Perdem no Céu (Mojo), no Garagem Hermética (Barros Cassal, 386), onde acontece um coquetel chinelo, no melhor dos sentidos, às 19h30. Definida como uma cooperativa, a Livros do Mal tem projeto gráfico de Pilla e pretende publicar novos autores gaúchos para renovar a cena literária local e nacional.

Entre elaborar o projeto e o mesmo ser aprovado pelo Fumproarte, programa de financiamento cultural da Prefeitura de Porto Alegre, foram-se sete meses. "Fizemos um projeto simples de propósito, para não perder o controle da coisa", explicou Galera. A dupla conseguiu botar as mãos em seus próprios livros, o sonho de qualquer escritor, após publicar textos em diversos sites e zines eletrônicos. O mais conhecido deles não existe mais. O Cardosonline teve sua última edição dia 12 de setembro, praticamente um mês antes dos livros do mal irem para a rua. "O zine já estava decaindo há um bom tempo. A maioria dos colunistas sentia que já tinha feito tudo que podia no formato. Eu, especialmente, tenho horror de me repetir e não tinha mais nada a dizer toda semana sem me achar meio besta por já ter feito algo parecido antes", disse Mojo.

Leia abaixo sobre Dentes Guardados e aqui sobre Ovelhas que Voam se Perdem no Céu. Visite o site Livros do Mal.


Dentes expostos
Danilo Fantinel / Redação Terra

Os contos selecionados por Daniel Galera em Dentes Guardados seguem uma lógica: têm coerência entre si. São em sua maioria textos curtos, bem curtos, sobre o cotidiano de jovens que amam, se apaixonam, estudam, trabalham, bebem e que, muitas vezes, não estão satisfeitos. Isso não é novo pra você? Então calma. Isso não é novo pra ninguém. Isso é apenas humano.

Temas como esses já foram explorados por gerações inteiras de escritores. Os beatniks, por exemplo. Atualmente, o escocês Irvine Welsh (Trainspotting), e os ingleses Nick Hornby (Alta Fidelidade) e Alex Garland (A Praia) são alguns dos novos autores que buscam nesses assuntos inspiração pra preencher páginas de literatura pop. O termo, massificado e desvirtuado especialmente pelo público de Internet, não se encaixa no semi-autobiográfico Dentes Guardados. Embora Galera viva em um mundo pop e faça referência a ele - especialmente aos livros - não escreve como um autor pop.

Seus textos não tem citações pop malucas porque simplesmente não precisam delas. É mais universal que isso justamente por abordar temas comuns a todos, que são muito mais conhecidos do que aquele disco de 79 do Joy Division ou a quinta música do lado B do terceiro disco dos Smiths. De qualquer forma, o Galera não perderia tempo falando dos Smiths...

No entanto, se os cenários e temas são parecidos e se correspondem, a variedade de narradores é grande. Uma menina abre o livro, um cara apaixonado se mostra na dúvida na outra história, namorados intrincados e respostas que não são ditas estão no próximo conto, o cara bêbado que vai comer a coroa e tem uma noite péssima está na outra página, os amigos que vão chinelear numa cidade no fim de semana dão continuidade ao livro. São os primeiros cinco contos, não necessariamente os melhores, a apontar a riqueza na criação das figuras responsáveis por te contar as histórias.

Em vários contos, as personagens, homens ou mulheres, passam por medos comuns a nós, se mostram fragilizados como qualquer pessoa, são pequenos paranóicos afetados por inseguranças ordinárias, como aconteceu com você na semana passada. Ou foi na semana anterior?

Dentes Guardados alerta exatamente para o vazio de nossas almas, para a passividade das pessoas em suas próprias relações, e aponta para a nossa necessidade de satisfação, nem que seja pelo prazer fácil. O arquitetado Triângulo, um dos textos mais legais, talvez seja o que melhor represente esse descontentamento.

O conto é dividido em duas histórias semelhantes. Uma é sobre um casal hetero que se envolve com um cara. A namoro acaba e forma-se um casal gay, comandado pela paixão. Na outra história, na qual alguns personagens, situações e detalhes se repetem, um casal de lésbicas se aventura com um cara. Elas acabam e um casal hetero forma-se. Nas duas partes do conto, as coisas aparentemente terminam bem, mas a sensação de algo inacabado fica nas entrelinhas. É o amor interrompido, que está na cabeça do narrador e no coração de quem ficou pra trás.

A impossibilidade do amor aparece ainda em outros contos, como no ótimo Escrava Branca, em Alguma Psicologia e até no angustiante pesadelo de Subconsciente. Essa perspectiva desanimadora e realística (você não tem a impressão que o amor sempre fica para trás?) só é reparada em Dafne Adormecida. Leia para saber por quê.

De quando são os contos do livro?
São textos que escrevo desde 1998. Tenho uns 30 contos. Não escrevo muito. São os que eu mais gosto e escolhi eles para o livro ter um mínimo de coerência. Todos já foram publicados em sites ou no Col. Acho que não há diferença em publicar um conto em um livro ou na Internet. O conto tem que se resolver em si.

Os temas do livro são próximos ao leitor e já foram tratados por uma série de escritores, inclusive pelas estrelas da literatura pop (LP). No entanto, teus contos estão longe do tipo de narrativa pop que a gente está acostumado a ler...
Acho que é inadequado chamar de literatura pop mesmo. Até por causa do conceito que se tem de LP no Brasil hoje, diferente do conceito inicial. A literatura pop usa elementos cultura pop em sua narrativa. Não me identifico com isso e não escrevo como eles, mesmo fazendo parte da cultura pop.

Os jovens superatarefados com trabalho e estudo são infelizes, com boa parte dos personagens do teu livro? É um livro autobiográfico?
Tem partes dele que são. Eu divido muito trabalho e vida. Não sei se é bom ou ruim. Hoje as pessoas têm muita informação e se dão conta de tudo o que poderiam fazer. Elas têm noção de todas opções que têm e de todas as que não podem seguir. Elas têm informação pra contestar suas vidas, mas não têm coragem pra fazer isso. Essa é a infelicidade.

Temas e cenários são comuns entre si no livro, mas há uma boa variedade de narradores. Esse foi teu maior exercício literário em Dentes Guardados?
Não costumo escrever contos pensando na técnica. Em geral é o contrário. Tenho a idéia pra história e o narrador simplesmente surge para cumprir seu objetivo.



Ironia e deboche acompanham a solidão
Barbara Nickel / Redação Terra

Próximos, mas separados por um abismo. Assim estão a maioria dos personagens nos contos de Ovelhas que voam se perdem no céu, de Daniel Pellizzari. Seja um hamster abandonado pelo dono, uma menina no jardim de infância ou um bêbado num bar, não importa. A solidão passeia por quase todas as histórias do livro. Por nenhuma delas, entretanto, andam as lamentações ou os sentimentalismos baratos que poderiam tornar a obra um clichê. Ao contrário, a beleza dos textos está em oferecer como companhia à solidão um toque de ironia, um toque de deboche, um toque de esperança.

Pellizzari era um dos colunistas do zine Cardosonline, mas já usava a Internet para divulgar seus textos e fazer experimentações desde 1995. Antes de Ovelhas que voam se perdem no céu, ele participou de antologias, como Contos de Oficina, de Assis Brasil, e teve alguns contos publicados em revistas. Confira a entrevista:

Por que tu e o Galera estão partindo agora do meio eletrônico para o impresso, através da Livros do Mal?
A força principal da mídia eletônica é formar um publico, que vai comprar teu livro depois. Se tu lanças um livro sendo completamente desconhecido, vai acontecer o que geralmente acontece: ninguém vai comprar, ninguém vai dar atenção.

Há alguma diferença em se produzir um texto para ser impresso ou para ser publicado eletronicamente?
Tem dois tipos de literatura eletrônica, na verdade. O tipo chamado hardcopy está num site ou num zine, mas poderia estar impresso. Esta é só uma transposicao. Tu podes imprimir e ler. A softcopy é o tipo de literatura que utiliza hipertexto, som ou outros recursos que não podem ser transpostos. Ela precisa do meio.

E os contos do livro foram escritos para ser impressos?
Depende. São 17 contos, 11 deles tiveram a sua primeira versão escrita antes de o Col existir. É um negócio muito mais antigo, mas eu fui modificando. Quando eu estava no Col e eu escrevia alguma coisa, era sempre muito mais rápido. Não tinha aquilo de ficar analisando, como para o livro. Eu escrevia pra publicar na Internet, mas pensando em um dia reunir um material legal, pegar o melhor e colocar em um livro.

E a experiência com o Col, te influenciou como?
Uma coisa legal era a reação das pessoas. Criticando, dizendo o que estava bom, o que não estava. Eu aprendia a ver do que as pessoas gostam, do que elas não gostam. E isso na verdade não me interessa muito em termos de literatura, porque eu não quero dar para as pessoas o que elas gostam ou não gostam. Mas o legal foi aprender o que é que funciona e o que é que não funciona. Quando eu fazia alguma coisa com determinado objetivo, eu podia ver na hora se eu tinha conseguido ou se tinha dado errado. E isso me interessa. Agora, elas gostarem ou não, não me interessa. Eu não escrevo as coisas para que as pessoas achem legal.

Vocês já tem idéia de quais serão os próximos livros, os próximos escritores a serem publicados?
Sim, mas a gente não pode falar. Tem livros de contos também. Mas outros a gente não sabe. Ano que vem vamos abrir pra originais. Dependendo de quanto a gente vender, de quanto dinheiro as pessoas tiverem também, a gente vai lançar mais uns seis títulos no ano que vem.

E o título do teu livro, de onde tu tiraste?
Isso era uma frase de um fanzine de uma amiga minha. Eu até coloquei ali no final a frase dela. Era um fanzine só sobre ovelhas. Era da Polla e do Carlinhos, da Bidê ou Balde. Era um fanzine de papel mesmo. Eu vi aquela frase e achei maravilhosa.

Qual foi o critério pra escolher os contos que entrariam no livro?
Eu devo ter uns 70, 80 contos. Tem muita coisa inacabada, muita coisa que eu acho ruim demais. Eu meio que sabia, de cabeça, quais os que eu não queria e quais os que eu queria. Este livro é "o livro". É a coisa que eu penso há anos como "o livro" que eu vou publicar. Então tinha um esqueleto já pronto. Já existia uma estrutura pensada. Na verdade, tem um site meu na Internet onde estão a maioria deles, o Ex.

Uma característica bem presente, que dá pra notar no Eu, você, no Missal para rastejantes e até no Um hamster é a solidão. E, além de parecerem sozinhos, os personagens parecem buscar algo no outro que é inatingível, esperar algo que eles não vão ter.
Não é uma coisa voluntária do tipo "eu vou escrever para refletir sobre este tema". Tem gente que faz isso. Não é errado. Eu acho que eu até já fiz isso algumas vezes, mas não é de propósito. Eu acho que é algo que deve ter a ver com a minha percepção das coisas. Tinha uma época em que eu tinha essa coisa bem forte, de enxergar um abismo entre as pessoas.

Mas apesar desta solidão, há um humor e uma ironia que aliviam. Não é um negócio pesado. Isso também não é voluntário? O das formigas (missal para rastejantes), inclusive, eu acho que tem um final feliz...

Na verdade, acho que muitos deles têm final feliz... Mas é completamente involuntário. É uma idéia que vem e eu faço até o fim. Depois eu vejo como é que fica. Como é uma coisa que se repete, obviamente também deve ter a ver com a minha percepção. A incomunicabilidade das pessoas eu acho que é uma característica da nossa sociedade, principalmente na vida mais urbana. E a ironia, e a auto-ironia, são umas das melhores maneiras de tu quebrares isso. Tu não podes te levar muito a sério, levar o teu discernimento muito a sério.

Um trecho de "Missal para rastejantes":

"formigas. quando ele foi embora eu olhei pro chão e juro que nunca na vida tinha enxergado tantas formigas. eu queria acabar ali mesmo. desexistir assim. mas agora nada mais me impede. não me importo. tomar o caminho de casa como todos os dias, o perto chegando aos poucos. segurança; a ausência sempre me foi ponto de partida. ele nunca estar ali quando eu mais precisava em contraste com a promessa de um dia ele estaria porque eu era ela."