Clipagem


No mínimo
2 de agosto de 2002
por Paulo Roberto Pires

Caiu na rede, é texto

Hoje já sei mais do João Paulo Cuenca, o escritor desbocado e abusado que semana passada serviu como guia pela incerta e imprecisa geração 2000. E o que fiquei sabendo virou constatação de como essa turma que ainda não publicou livro está usando a Internet para escoar sua produção e, assim, ir construindo uma voz literária própria. Além de economista e guitarrista das bandas Netunos e Glamourama, nosso personagem assina um blog divertidíssimo, o Folhetim Bizarro. Maravilhado que está com este tipo de página pessoal, o Zuenir já pode incluir em seus “favoritos” este e pelo menos mais outros dois – o Go-Gonzo Girl e o Brazileira!Preta – se quiser saber como alguns blogueiros fazem de seu brinquedinho muito mais do que uma tribuna ou diário e exercitam ali, diariamente ou quase, uma oficina de literatura em tempo real. Work in progress é isso aí.

Não vale a pena perder tempo com as teorias mirabolantes sobre as relações entre literatura e internet, a platitude nerd de que Julio Cortazar já fazia hipertexto no “Jogo da Amarelinha” etc. Se realmente haverá um impacto sério da Internet sobre a linguagem literária não dá para saber agora. O que é possível afirmar, sem dúvida, é que a fórmula “uma idéia na cabeça e um modem na mão” representa para o jovem escritor uma saída concreta e possível num ambiente literário que parece infenso a novidade. Diz-se – e é verdade – que nos últimos 15 anos o autor brasileiro profissionalizou-se. Mas na mesma medida em que o mercado editorial tornou-se viável, passou a influenciar o comportamento de quem, como autor ou candidato a, evidentemente quer ser publicado e lido.

Na ânsia de serem aceitos, muitos iniciantes acabam produzindo narrativas prêt-à-porter, que encontrem resposta imediata de editores e já tenham lugares garantidos nos catálogos. E tome policial – na década de 80 o eleito foi o romance histórico – e livro escrito com um olho na telinha do computador e outro na da televisão. E tome escritor que se comporta como “profissional” administrando obra e carreira que ainda não tem, como se a vida literária precedesse a própria literatura. Tudo isso para atender – conscientemente ou não – a um mercado que em geral não cumpre sua parte: publica mas não distribui, distribui mas não divulga ou divulga mas não distribui.

Quem escreve na rede não escreve para isso, o que não quer dizer que não tenha pretensões maiores do que o seu blog – e a melhor e mais saudável prova disso é a criação da Livros do Mal, editora que lançou em papel o que os ótimos Daniel Galera (“Dentes guardados”) e Daniel Pelizzari (“Ovelhas que voam se perdem no céu”) vinham escrevendo no e-zine Cardoso on Line. Na web a única gratificação é ser lido, comentado e contestado. Não se trata de alternativa com cheiro de patchouli: diferentemente dos mimeógrafos ou dos fanzines, na internet não é preciso construir meios de expressão e distribuição. Está tudo pronto – e, o que é melhor, misturado. O blog, o “New York Times”, o No Mínimo e os sites pornográficos são vizinhos. A produção não é marginal, pois sem um centro (e a rede não tem um) não é possível sequer delimitar as margens, a periferia.

Ainda que incipiente, disforme mesmo, começa a aparecer na rede uma ficção com a cara dos tempos que correm – e como correm. Enfeixar estes nomes na designação de uma geração não é tão absurdo ou precipitado assim quando se pensa nos termos de Antonio Candido. No famoso prefácio a “Raízes do Brasil”, o crítico diz serem parte de uma geração aqueles que “participaram de uma certa ordem de interesses e de visão do mundo, no momento particular do tempo que se deseja evocar”. O momento é hoje e, alguns dos que têm interesses comuns são, ladies first, Cecília Gianetti, Clarah Averbuck e o nosso já conhecido JP Cuenca.

“O negócio com a nova geração de escritores é que a biografia completa vem junto com a obra”, escreve Cecília Giannetti, jornalista e vocalista do grupo Casino, 25 anos, que batizou seu blógui (é assim que ela escreve) Go-Gonzo Girl em homenagem a Hunter S. Thompson, o pai do gonzo journalism (uma versão piradíssima do new journalism), e traduz em seus textos essa ambigüidade entre informação e ficção, às vezes muito próxima da crônica mais tradicional. “Aqui você pode me ver usando ‘eu’ quantas vezes por parágrafo bem entender, sendo macho pra caralho, sendo guei pra caralho, abusando de piadas internas, não dormindo, utilizando CAPs indiscriminadamente (...) Me referindo a mim mesma na 3ª pessoa. Três vivas para o umbiguismo!”, apresenta-se Clarah Avebruck, 20 e poucos anos, jornalista free-lancer e escritora full time, o suficiente para simular confissões e verdades na sua Brazileira!Preta, base do livro que lança agora pela editora Conrad, “Máquina de pinball”. “Folhetim bizarro, diálogo esquizofrênico, literatura tosca, barbaridades sem medo, finais improvisados, escrotidão sublimada, segredos mal contados, vulgaridade refinada, chute na porta, orgulho arranhado, versões subjetivas, verdades escarradas, cheiro de água sanitária, hedonismo sem vergonha, voz contemporânea”, define-se Cuenca no Folhetim Bizarro, na verdade uma série de diálogos muito ágeis, sem descrições, que sugerem mais do que constroem cenas e microcontos.

De formas diferentes – Cecilia com um pé no jornalismo, Cuenca na construção de vozes narrativas, Clarah na tentativa romântica de apagar limites entre arte e vida – os três parecem tatear caminhos de transgressão possíveis em meio a tanta caretice. Para começar, defendem com vigor a primeira pessoa (deixada de lado pelo grosso da produção recente), fazendo questão de lambuzar o texto com a experiência bruta do cotidiano de forma, insisto, diferente dos anos 70: o “umbiguismo” dessa rapaziada não tem qualquer sentido transcendente e também não traduz rebeldia sem causa, porra-louquice pura e simples. Reivindicam, para começo de conversa, o direito à divergência e à diferença.

De forma mais ou menos direta, estes textos são salpicados de referências de literatura de alguma forma contestatória, dos inevitáveis beatniks (Clarah diz que faz literatura bitchnik) a Charles Bukowski, Hunter Thompson e pouca coisa contemporânea mesmo – há também um bocado de Nietzsche. Pois o que os liga à produção artística de hoje é a música, um pop com neurônios como o do Radiohead e também todo um universo de indies. E isso não é à toa: nos últimos 30 anos as noções de transgressão e afronta, estética ou comportamental, estiveram pouco, pouquíssimo ligadas à palavra escrita. Em termos de invenção, a literatura vem perdendo, e feio, para o cinema e a música. Começar a ser escritor hoje é confrontar-se com todos estes desafios.

O mais fascinante destes blogs é justamente a possibilidade de ver, não sem voyeurismo, como estas decisões, escolhas e dificuldades acontecem. Pois ao começar na web, a literatura muda de status: se dessacraliza com uma radicalidade nunca vista e, para retomar o que Cecília diz, junta ficção, diário, correspondência completa, rascunhos e originais como se o tradicional processo literário tivesse sido inevitavelmente acelerado, da produção até o leitor.

O que se tem aí é uma massa de vozes, vozes em afirmação e afinação, momento privilegiado de formação de um ambiente literário que pode ser menos viciado em gratificações. São escritores que não têm medo de se definir como tal e que também não estão esperando a obra-prima, a mística do texto perfeito. Em vez disso, estão preocupados em escrever: bem, mal, sujo, limpo, linear, caótico, coloquial, deprimido. Só assim, pelo acúmulo de erros e acertos se chega a algum lugar que valha a pena. Será que isso tudo acaba em livro?