Clipagem
Nomínimo Que semelhanças podem existir entre o Brasil agoniado dos anos 70, da liberação sexual, dos guerrilheiros e dos poetas marginais, armados com seus mimeógrafos, e o Brasil agitado do século 21, do pragmatismo, da violência e da internet, com jovens equipados com microcomputadores? Três décadas e o salto tecnológico que elas significaram não foram suficientes, no entanto, para apagar algumas semelhanças e repetições. Tampouco para evidenciar questões, ou impasses, que nunca se chegaram a resolver. A literatura dos transgressores da chamada “Geração 90” _ que agora ganha uma impecável antologia organizada por Nelson de Oliveira (Geração 90/Transgressores, com textos de Marcelo Mirisola, Ronaldo Bressane, Arnaldo Bloch, Daniel Pellizzari, Cláudio Galperin e outros|, Boitempo, 352 páginas, R$ 31,00) _, em particular a literatura de um autor como Joca Reiners Terron _ que acaba de lançar a novela Hotel Hell (Editora Livros do Mal, Porto Alegre, 160 páginas, preços a fixar) _ são provas eloqüentes disso. São leituras fundamentais para quem deseja estar sintonizado com os novos caminhos que a literatura brasileira começa a tomar no século 21. É só pegar autores como Marcelino Freire, Clarah Averbuck, Daniel Pellizzari, Edyr Augusto, Jorge Cardoso, e de outro lado pensar em gente como José Agrippino de Paula, Ana Cristina César, Cacaso, Francisco Alvim e Chacal e algumas semelhanças, apesar de fortes diferenças também, estarão aí, reluzentes, escandalosas. É claro, a qualidade da produção editorial das casas em torno das quais os jovens autores de hoje se agrupam, como a Livros do Mal, a Ciência do Acidente e a Ateliê, está léguas à frente da precariedade com que a chamada “geração marginal” fazia seus livros mimeografados. Mas o avanço tecnológico só mostra uma parte da verdade. Aponta para um movimento que, se de um lado configura um salto, de outro conduziu à imobilidade. A mais dramática delas, aquela que se agita sem sair do lugar, como um estrebuchar. Em sua apresentação à excelente antologia da “Geração 90” organizada por Nelson de Oliveira, o prefaciador Flávio de Aguiar usa uma expressão muito feliz: “Nesse mundo, as palavras articuladas assemelham-se a bolhas: elas espoucam, se sucedem e se desmancham no ar; a comunicação fica impossível”. Aqui, talvez, nessa volatilidade, nessa rapidez infernal, esteja o elo que liga as duras gerações de escritores que um quarto de século separam: uma espécie de sufocação que, nos anos 70, era provocada pelo regime militar e pelos horrores da repressão e que hoje, por sua vez, tem sua origem mais provável na vida supérflua de consumo rápido e no pragmatismo de mercado. Os contos de agora são, acrescenta Aguiar, relatos de denúncia _ mas em 70 também eram de denúncia aqueles poemas e narrativas curtas, mimeografados e escritos às borras, num estado de grande tremor; eram peças de resistência e de contestação, envolvidos numa luta precária, mas feroz, contra um opressor meio difuso _ e talvez essa zona de sombra, que a tudo iguala, tenha ajudado a chapar um pouco, naqueles tempos, a produção estética. Ambas as gerações guardam, como diz o subtítulo oferecido por Nelson, a aparência de transgressores, uns da ditadura política, outros do capitalismo pragmático. Assim, ao menos, eles se vêem. E, nesse estado de sufocação, a primeira característica que retorna numa novela como Hotel Hell é o poder dos fragmentos. Aspecto, aliás, em que ela se distingue radicalmente de um romance como Pan América, de José Agrippino de Paula, no qual os delírios lisérgicos achatam toda a narrativa numa só e quase monolítica atmosfera de sonho. Em todo caso, do mundo psicodélico de Agrippino ao mundo cru de Terron, ainda se vislumbra uma ponte. São universos aos pedaços, nos anos 70 colados artificialmente pelo delírio e pela droga, e hoje, em vez disso, com sua face de caco e de poeira exacerbada ao extremo, pulverização que, ela também, conduz a certa apatia. Hotel Hell é composto de 59 capítulos curtos que podem ser lidos como contos, estilhaços, pedaços, detritos a estruturar uma narrativa _ se é que o verbo “estruturar” pode mesmo ser usado nesse caso. Em cada capítulo, ou conto, não só um ponto de vista diferente, mas também um estilo, uma escrita, como se a novela tivesse vários autores. Num resumo que preparou para seu livro, o próprio Joca Terron é o primeiro a dizer que a história não tem um desenvolvimento, pois “nada se desenvolve propriamente”. O grande personagem é a cidade de São Paulo, uma cidade inebriante e enlouquecida, na qual a realidade parece se movimentar em círculos cada vez mais acelerados, nos quais a metrópole escava o próprio túmulo. A São Paulo de Joca Terron é uma montanha-russa fora de controle. Nessa pane, tudo se repete, de início ao fim temos uma grande e agitada experiência, que faz muito barulho, mas só oferece desconforto e insegurança, e retorna sempre ao mesmo lugar. O Hotel Hell em questão, para começar, não é um hotel, mas um parque temático. A história se constitui, assim, já sobre uma falsificação, um trama de aparências e rótulos em que todos os personagens são falsos, ou artificiais. A novela é narrada por múltiplas vozes, mas elas pertencem também a personagens temáticos, de modo que estão desprovidas de qualquer seriedade e evocam sempre um mesmo estado _ o do artifício. É um mundo de miragens, de ilusões sem conteúdo, e que abriga personagens sem rosto como o Oráculo do Frango Assado, o único galeto a quem deixaram o coração; O Bispo Secreto, que é ao mesmo tempo dono do Hotel Hell e apresentador de circo; Mickey-O-Macaco, um macaco que é ex-gerente do circo; e os Velociraptors, quadrilha viciada no pior. Nomes que evocam personagens de quadrinhos, ou do cinema de ação, mas que não são uma coisa, nem outra. Sua profundidade está, justamente, nessa superficialidade, com a qual eles nos chocam e comovem. É por serem máscaras provavelmente vazias que os personagens de Joca Terron provocam em nós tanta perturbação. Então, é o caso de perguntar: o que exatamente tais personagens, e tais narrativas, transgridem? De certo modo, elas repetem a imobilidade do mundo, a zoeira monótona que bate em discotecas, butiques da moda e academias de ginástica. Contudo, ao repetir e repetir, escandalosamente, elas como que repuxam para fora o íntimo desse mundo massificado, e a repetição se torna não só uma arma, mas também um veneno, porque acaba denunciando os impasses e os enganos que regem a São Paulo de hoje. No prefácio de sua antologia, o próprio Nelson de Oliveira se pergunta: “Que significa ser um transgressor hoje em dia?” Depois de encontrar nessa geração algumas características comuns, como a ironia, a insanidade, a fragmentação lírica e a delicadeza do absurdo, Oliveira _ com toda a razão _ lembra que hoje as categorias que vêm desde Ezra Pound, que dividem os escritores entre vanguardistas e conservadores, já não servem mais para a análise literária. Transformaram-se, elas também, em máscaras ocas, e inúteis. A questão não é mais saber se autores como Joca Terron estão andando para a frente, ou para trás. A palavra “transgressão” não tem hoje necessariamente, como tinha no modernismo, um valor positivo, assim como ser um escritor “conversador” não é mais, necessariamente, negativo. “Passado o impacto dessa guerra santa, nem a vanguarda nem a retaguarda saíram ilesas: somaram e subtraíram muita coisa uma da outra”, escreve. E deu no que deu, nessa literatura que corresponde ponto a ponto ao mundo interligado, veloz e superficial que nos cabe viver. Na verdade, escritores como Terron não estão preocupados nem com a repetição, nem com a renovação, questões estéticas que passam a léguas de distância de seu computador. O que buscam, sem se importar muito com a qualidade dos meios, é expressar a confusão de seu tempo. Como diz a epígrafe tomada de Shakespeare que abre Hotel Hell: “Nosso tempo está desnorteado, maldita a sina que me fez nascer um dia para consertá-lo”. Haverá conserto? Parece que não, e é dessa impossibilidade de solução que a literatura da Geração 90 se alimenta. Ela não quer responder a nada, solucionar nada, fixar nada _ até porque pouco ou quase nada, em seu modo de ver, há a fixar.
Em Hotel Hell se misturam automóveis em alta velocidade, assaltos a mão armada, cenas no metrô, seqüestros, drogas, agiotas, churrascarias – e não fossem as churrascarias, bem que poderíamos estar em um thriller de Hollywood. Essa semelhança em nada perturba um autor como Terron que, ao contrário, quer mesmo trabalhar com esses dejetos simbólicos em que a sociedade industrial avançada, da internet e dos satélites, se encarrega de nos atirar. Então, se sua novela às vezes beira o pornográfico, ou a grosseria, ele também não se esquiva, já que está lidando com materiais retirados diretamente do mundo real, que estão aí, à vista de qualquer um. Basta ligar a TV, ou dar uma olhada pela janela. Ou abrir um livro como a asfixiante novela de Terron.
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