Clipagem
Prosa e Verso - jornal O Globo Eles não têm quase nada a ver um com o outro. Mas em certas esquinas até que se cruzam e tomam uma. O paulistano Eduardo Fernandes, o popular Eduf, 28, sociólogo que se vira entre bandas e bicos de design, é editor da provocativa revista eletrônica “Fraude” (200 mil acessos semanais, temporariamente fora do ar por falta de grana para hospedagem). Colunista de literatura na “Fraude”, Daniel Galera, 24, jornalista paulistano que mora em Porto Alegre desde piá, é um dos criadores da Livros do Mal, editora cujo estilo punk do-it-yourself bebeu na fonte da editora de Eduf, a Ciência do Acidente (tocada pelo poeta e prosador Joca Reiners Terron). O que essa embaçada introdução quer dizer? Que o crime está mais que organizado — os escritores não reclamam mais de seu talento inédito vagando feito fantasmas por gavetas de editores lesos que somente os descobrirão mortos ou depois dos 40 anos. Longe da precariedade típica dos marginais dos anos 70, os autores dos anos 00 estabelecem bem cuidadas edições, articulam canais de divulgação e aos poucos formam um público interessado em carne nova — isto é, uma escrita ainda não domesticada pelo mainstream de acadêmicos e Jabutis (gente que ainda discute termos como “literatura regional”, gosta muito de “romances históricos” e no fundo adora uma adaptaçãozinha para a TV). Inadaptadas, mal-educadas na rua, as vozes destes livros ventrilocam buzinas, fios de alta tensão, celulares, cânticos de mendigos: Eduf e Galera, demasiadamente urbanos, têm uma eletricidade tão orgânica que não se sabe em sua escrita onde começa a cidade e termina o homem. E ah — não se trata de “literatura pop”. NOOSFERA Fragmentado em microcapítulos, “O prazer de decepcionar” (ed. Ciência do Acidente, 144 págs., R$ 24), de Eduf, se estrutura sobre três linguagens: a narrativa, a dos quadrinhos (do autor) e slogans, nomes “espertos” de seções e citações, lembrando mestre Valêncio Xavier. A história se passa das 17h30m de um dia às 6h20m de outro. Um jornalista desempregado, da zona norte de SP e com complexo de periferia, apaixona-se por uma prostituta vulgar. Só que a prostituta não o é (já entrego uma das decepções, desculpe). Nessa noite, surgirão um PM à caça de um estuprador, um par de cientistas abusando de uma cobaia, uma estudante em busca de emoções; situações-limite num fuleiro quarto de hotel e no topo do edifício Copan — de onde, diz o narrador, é possível vislumbrar a noosfera, conceito do filósofo Teilhard de Chardin, assim definido: “Notou uma neblina, uma espécie de nuvem que cobre São Paulo permanentemente? Essa é a noosfera, onde se concentram todas as flatulências mentais da cidade. [...] As pessoas acham que aquilo é gás carbônico [e não deixa de ser], porém, isso é puro lixo intelectual”. Corrosivo, o sarcasmo de Eduf perpassa camadas ficcionais. O narrador mais surpreendente é o tal PM, cuja inflexão da periferia é outro charme. Atenção doutores universitários, abram os ouvidos para sacar como a “literatura regional” está sendo reescrita: “Nunca catei uma dessas mina de elite. Pego umas preta crasse a [por causa da farda, né?], mas essas sedozinha aí, nem fodendo. Tô aqui a essa hora porque os mendigo é mano e me dissero que entrou um cabeludo neste hotel da... da... sei lá o nome da rua, é tudo igual no centro”. NÁUSEA Já “Até o dia em que o cão morreu” (ed. Livros do Mal, 122 págs., R$ 20), segundo livro do autor do volume de contos “Dentes guardados”, é ligeiro e seco. O texto de Galera é de uma angústia anônima camusiana. Aqui há também um homem, uma mulher e um apartamento, mas o mal-estar não deixa que ironia e cinismo entrem pelas janelas — o tom é mais melancólico. Galera não é um moralista como Eduf, ou, indo mais longe na lama, Marcelo Mirisola. Nem por isso o narrador (na primeira pessoa), um tradutor desempregado, deixa de sofrer da mesma náusea — a ponto de isolar-se, sem telefone, no 17 andar de um edifício com vista para o Guaíba. O exílio não dura. Acompanhado na rua por um vira-lata, o tradutor o deixa morar com ele. Acompanhado por uma modelo após uma balada, acaba, sem querer, se envolvendo com ela. Para este ermitão silencioso e meio bêbado, os afetos, canino e sexual, se equivalem: “Não sei dizer o que me atraía no cachorro. Sua simples presença, o fato dele voltar a cada dois ou três dias, me dava prazer. Como a Marcela”. O misto de fascínio e repulsa que o tradutor sente por Marcela resulta em cruéis cenas de amor. “Há instantes eu tinha xingado ela, por ter aceitado aparecer num anúncio asqueroso de uma companhia telefônica [...]. Depois que ela me mostrou o book preenchido de fotos tipo capa de revista, naquela estética repulsiva dos anúncios de grife, pele brilhosa de óleo e colorida de maquiagem, passei a trazer aquelas fotos à imaginação enquanto comia ela [...]. Abusava dela deste modo porque era necessário destruir, erradicar qualquer resquício da modelo dos anúncios”. O que parecia uma história de amor se torna uma espécie de fábula sobre a decadência, como diz na orelha João Gilberto Noll: “A história de um jovem que se exaure antes da maturidade, se exaure pela ociosidade massacrante, sem saída à vista, se exaure porque o amor lhe confere apenas soluços secos, gozos avulsos”. Quem sabe por isso emane do livro uma aura que lhe confere, desde já — e sem favor nenhum —, o status de clássico. NADA
Para fechar, o lembrete de Fred Zero Quatro, da banda pernambucana “mundo livre s/a”: “Não espere nada do centro/
se a periferia está morta”. Sem o mal-estar de guerrilheiros auto-exilados como Eduf e Galera, a prosa brasileira vira
passatempo. Se literatura servir para isso, será preferível a doce anestesia de um reality show ou de um teledraminha
de violência, vistos debaixo do cobertor.
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