Clipagem


Jornal Jornal O Povo (Ceará)
13 de maio de 2003
Por Manoel Ricardo de Lima


Mal e mal, mas bom que só

Daniel pra tudo quanto é lado. Assim poderia se dizer. O que salpica de lá, salpica de cá. E entre um livro e dois, Daniel de um lado, 1, Daniel do outro, 2, e sem saber direito quem de fato é, e sem saber quem de fato insere narrativas em pontos e materiais para se pensar este mundo e esta vida que desabituamos tanto com nosso empobrecimento de experiência. Sem narrar, o que dizer? Sem dizer, como narrar? E quando não há o dito, o que sobra? Buracos, vazios, ovelhas que voam, um cão que morre, uma escrava branca, uma história de amor número 17, um adágio para umbigos, domingos que se sucedem e um ''eu nunca disse porra nenhuma'', inércia, mudos 'bonsdias', boas maneiras do acaso, um manual para atropelar cachorros, um clichê romântico, um amor perfeito (?), um ponto de fuga, uma fronteira no fim do mundo. Restos, desvarios, não ditos, barulhos, insônias, imprecisões.

Explicando a bagunça: Daniel 1 e 2 são Daniel Galera e Daniel Pelizzari. Moram em Porto Alegre. O primeiro, nasceu em São Paulo. O segundo, nasceu em Manaus. Os dois, me parece, escreviam coisas na parede da casa, de cada um, de cada vez. Faziam vincas. Mas passaram mesmo por um e-zine que ficou conhecido entre uma turma que gosta de blogs e ainda mantém-se adolescente no gesto, de fato, ou apenas na alma, por carinho ou impossibilidade leminskiana. O Cardosoonline (provável um tanto de gente tenha visitado a tela plana do lugar). De lá, creio, com vontade da palavra escrita no velho suporte do papel, montaram uma editora, a Livros do Mal, para poder fazer e editar os próprios livros num tempo hábil de estar no mundo.

Os primeiros livros apareceram em 2002. Dentes Guardados, do Daniel Galera; Ovelhas que voam se perdem no céu, do Daniel Pelizzari. Lembro que quando os livros chegaram, li-os de bate pronto, depois passaram um tempo na casa de um amigo disposto a ler também e ainda passearam por mais uma ou duas casas. Queria dizer deles, mas algo cismava pra não dizer ainda. E como eles não paravam mais na minha casa, fui deixando pra lá. Deixados, foram relidos quando retornaram e quando uma amiga me liga de Porto Alegre para dizer do livro novo do Pelizzari. Entrei em contato com o Galera, que lançaria o seu outro em breve, pedi os livros. São do ano corrente, recentes: Até o dia em que o cão morreu, do Daniel Galera; O livro das cousas que acontecem, do Daniel Pelizzari.

Os dois primeiros livros têm o mesmo projeto gráfico, praticamente, e dão senso de uma coleção ou algo parecido. Bom, os caras se editam, fazem como querem. O que é muito melhor. Constam de pequenas narrativas quase compridas, às vezes, que esticam projetos tensos para um desaparecimento do sujeito sensível, um que é composto de nadas ou, se composto de alguma coisa, que seja, são inadequações e saltos grosseiros provocados por nosso cotidiano mais mesquinho, este mesmo, de todos nós, quase bufo (alguns dos títulos estão espalhados no primeiro parágrafo). Este o ponto de intersecção; de diferente, para resvalar uma coisinha só, Daniel Pelizzari tem preferência por materiais de um insólito desfeito: ''O que me veio foi isso de seguir rumo ao infinito, daí, a saber, onde fica essa porra é uma outra história.'' ou ''Mamãe parecia estar dormindo. Não lembro de ter ficado triste. Mães mortas têm um cheiro doce.''

Os livros de agora, segundos, estão mais firmes, mais ditos, e trabalham melhor com a primeira idéia. Menos as orelhas (ou contracapa) que estão como todos os livros de qualquer outro, cheio do que chamam fortuna crítica (que é uma expressão horrível), resultado dos primeiros livros. E me parece, no caso aqui, deles, uma desnecessidade; os livros dizem muito sozinhos, por eles mesmos. São bons. Tratam de uma espécie de aceleração temporal que se dá unicamente no tempo do agora, do já, do zap. São descabimentos narrativos, confinamentos e istmos injetados pelas cidades contemporâneas, intolerâncias, gritos para dentro, restos humanos sustentados sobre pequenas lacunas de ser, nenhuma relação de fato, apenas a pobreza dela, sem choro, nem vela, e nenhum sorriso. Sem alegria, ou tristeza. Mas um enorme caráter de isenção. Como se as impossibilidades do mundo contemporâneo se dessem porque nos parece que tudo nele seja apenas sempre temporário. Como os cinco tontos desenhados por Pelizzari na narrativa intitulada ''Rancho Carne: Rafael, Renato, Ricardo, Rodrigo e Rubem''. Todos tomados por este temporário deslizado, rápido, tosco, troncho, tolo. Rubem, por exemplo, quer ser vereador e acha que seu nome é um nome de velho: ''Satisfeito, Rubem desliga a tevê da sala, toma o último gole do uísque e senta em sua poltrona de couro. Júnior, ele sorri. Júnior talvez seja a melhor escolha.''

Outra diferença, Daniel Galera escreveu desta vez uma narrativa só, e não várias pequenas, mas uma extensa e mínima, se é possível dizê-la assim. Um sujeito, Marcela, um cão, um porteiro de prédio, o Lárcio (um motoboy), uma doença grave e uma gastrite. E inércia, principalmente, inércia: ''Me causava agonia ver alguém se preparando constantemente pra começar a viver. Eu não conseguia fazer isso. Me parecia bem mais adequado permanecer exatamente onde estava, aceitando que minha vida era aquilo mesmo. Eu não precisava de muita coisa. Gostava de ir à janela do meu apartamento e olhar a cidade lá embaixo.'' E, adiante: ''Era só acender um cigarro e esvaziar a cabeça de qualquer expectativa e pronto, eu a sentia. Acabei me viciando nessa tranqüilidade. São as expectativas que fodem tudo.'' Um salto para frente em relação ao primeiro livro.

As personagens construídas, em separado, por Daniel Galera e Daniel Pelizzari são habitantes de um tempo dentro da picuinha da vida mesmo, citadina, abrupta, isenta, a cores e em tempo real. É bom dar olhadas nos caras, as mãos são certeiras, pesadas e esmurram o senso, põem às avessas o justo do narrador e esvaziam de vez qualquer possibilidade permanecida da experiência.