Clipagem


Prólogo
http://www.prologo.com.br
por Alexandre Inagaki

Um mouse na mão e muitas idéias na cabeça

Aos 22 anos, o publicitário e jornalista Daniel Galera arregaça as mangas e cria, junto com mais dois colegas de projetos na Internet, a editora independente Livros do Mal


"Catalisar arte que traga visões novas, que ultrapassem o exercício estético vazio, o lugar-comum da classe média ou deslumbramento com o mundo pop". Com a ambição que só jovens insistem em alimentar, os amigos Daniel Galera, Daniel "Mojo" Pellizzari e Guilherme Pilla estão sacudindo o cenário cultural de Porto Alegre, onde residem, ao criar a Livros do Mal, projeto que visa dar espaço no mercado editorial para autores iniciantes e ousados, a maior parte deles oriunda de meios eletrônicos, como sites e e-zines (fanzines literários distribuídos por e-mail).

Daniel Galera, apesar de seus 22 anos, possui know how de sobra para embarcar nessa utopia. Desde 1996, usa a Internet para divulgar seus contos e crônicas. Em 1997, criou o site Proa da Palavra, uma das primeiras páginas na Web brasileira dedicada à divulgação de novos autores, e que chegou a receber até 100 colaborações por semana. Em setembro de 1998, participa junto com o colega de faculdade André "Cardoso" Czarnobai da criação do Cardosonline, vulgo COL, e-zine (fanzine eletrônico distribuído por e-mail) pioneiro no Brasil. As edições do COL consistiam em mensagens recheadas de poemas, contos, egotrips, resenhas de discos e filmes, jornalismo alternativo e divulgação de festas, shows e sites.

De forma gradual e silenciosa, o COL foi se espalhando por mailboxes por todo o Brasil e até mesmo no exterior, chegando a 1500 assinantes cadastrados em um ano de existência. Com um estilo debochado e corrosivo, o COL se caracterizou por discorrer, sem quaisquer censuras, sobre qualquer assunto: sexo, drogas, música, jornalismo gonzo, política, arte. Seus colunistas (oito) tornaram-se personalidades conhecidas em Porto Alegre, e o COL foi objeto de matérias em jornais de todo o país, originando a criação de muitos outros e-zines.

Após quatro anos, 278 edições e cerca de 4800 assinantes, o Cardosonline está chegando ao fim. Um pouco porque a fórmula se desgastou, mas também porque seus integrantes estão alçando vôos mais altos. Galera, Mojo e Pilla, três de seus colunistas, uniram forças para criar a Livros do Mal, que começa com a publicação de dois títulos dia 1. de outubro: os volumes de contos "Dentes Guardados", de Daniel Galera, e "Ovelhas que Voam se Perdem no Céu", de Daniel Pellizzari.

Nesta entrevista, Daniel Galera, que concilia as atividades da Livros do Mal com seu trabalho como redator no portal Terra, fala sobre o ofício de escrever, a experiência da criação da Livros do Mal e o imenso laboratório literário que é a Internet.

PRÓLOGO - Por que insistir em escrever, ainda mais em um lugar ingrato como a Terra Brasilis?

Daniel Galera - A literatura como única fonte de renda é uma coisa meio esotérica em qualquer lugar do mundo, não só no Brasil. Escritores também costumam ser editores, professores, publicitários, advogados, autores de teatro, mas só escrever não sustenta ninguém, creio que nenhum aspirante a escritor tem essa ilusão. Deixa de fora, claro, as celebridades e escritores de apelo popular, coisa que nunca foi meu interesse. Eu escrevo porque gosto e preciso. É o tipo de arte que sei fazer, acho, e não tenho escolha. Enquanto isso, sou um jornalista, fico oito ou mais horas por dia numa redação, tempo que obviamente preferia gastar lendo ou escrevendo, mas já assimilei esse tipo de dualidade. Vou divulgando meus textos como posso, pela Internet ou por meios independentes, como estou fazendo com a Livros do Mal. Insistir em escrever é, de qualquer modo, uma escolha que surge de uma necessidade muito mais espiritual do que pragmática. Parar de escrever simplesmente soa como loucura.

P - Como surgiu, e o que te motivou a criar o Proa da Palavra?

DG - A Proa da Palavra foi um projeto pessoal que inventei em 1997. Imaginei como seria legal ter um site de literatura publicando textos de escritores iniciantes. Me dei conta que era relativamente fácil de fazer, então fui lá e fiz. Criei o site, divulguei com cartazes, editei semanalmente a revista. Deu mais certo do que eu pensava, durou quatro anos. Recebia cerca de 100 colaborações por semana, era incrível. Mas depois de muito tempo, fui cansando. Comecei a perder a motivação, porque os textos que chegavam eram ruins, e comecei a me dedicar a outros projetos. A Proa fechou seu ciclo, nasceu cresceu e morreu, influenciou vários outros sites de literatura na rede, que imitaram o formato. Aprendi muito sobre programação, edição e literatura por causa dessa experiência. Valeu, mas terminou.

P - Conte um pouco da sua experiência com o Cardosonline. Em que a sua participação como colunista no COL mudou a sua vida?

DG - O COL foi algo semelhante. Quando li as mensagens que o Cardoso tava mandando pros amigos durante a greve da UFRGS, em 1998, tive o insight - uma publicação por e-mail, com colunistas fixos, coisa e tal. Falando de cultura, drogas, textos subjetivos. Hoje parece uma coisa tão comum, banal, mas há três anos era algo praticamente inédito no Brasil. Juntamos um pessoal e começamos a escrever. O sucesso foi imenso, hoje temos 4800 assinantes. O COL foi um marco na minha vida em vários aspectos. Me forçou a escrever semanalmente, a confrontar os leitores, a evoluir mês depois de mês. Meu texto evoluiu muito por causa do COL. Conheci pessoas, recebei ofertas de emprego por causa deste fanzine. É um fenômeno. Agora o próprio COL, como a Proa da Palavra, está fechado seu ciclo. Coisas legais são assim, acabam. O importante é começar coisas novas, não parar.

P - Somando as experiências do Proa da Palavra e do COL, qual a importância da Internet em tua formação como escritor?

DG - Foi através da internet que divulguei meus textos desde que comecei a escrever contos e crônicas, lá por 1996. É um laboratório de criação fabuloso, permite troca de textos com outros autores, publicação, experimentos. E-mail, páginas pessoais, ICQ, processadores de texto, tudo isso ajuda a desenvolver a literatura. Mas é assim que vejo a internet: um meio auxiliar, um complemento. Quando escrevo, imagino meu texto numa folha impressa. Gosto de livros, acho que apenas neles os textos se completam.

P - "Os autores mudaram de atitude, não querem mais ser Balzac ou Tolstói. O meio tornou-se uniforme, com a globalização. Os escritores pertencem a um meio protegido, à pequena burguesia satisfeita". As palavras de Maurice Nadeau, que você cita em seu artigo "Literatura, Individualismo e os Outros" publicado no COL 253, sintetizam bem o panorama de uma era na qual a literatura perdeu relevância como fator de mudanças ou contestação do status quo. Pode-se afirmar que a criação da Livros do Mal surge como uma possível resposta a esta época de comodistas? E, afinal de contas, o que leva três estudantes gaúchos à porralouquice de montar uma editora do nada?

DG - O que nos leva a criar uma editora independente? Boa pergunta. É o mesmo que me levou a criar a Proa, a ter a idéia do COL. É tu imaginar uma coisa que tu queria fazer e se dar conta de que é possível realizar ela. E realizar. Parece banal, mas é raro uma coisa dessas acontecer, tu surgir com um projeto que, de repente, vale o investimento de boa parte do teu tempo e do teu dinheiro. Mas é uma delícia. No caso da LDM, a gente queria ter nossos livros impressos e distribuidos, em formato legal, com uma capa trimmmassa. Então um dia eu, o Mojo e o Pilla nos olhamos e nos demos conta: ei, podemos fazer isso. Vamos tentar? Quando ao comodismo, é uma coisa que sinto em boa parte da literatura de novos autores que ganha espaço em grandes editoras por aí. Parece que falta tutano, questionamento, confronto nos textos. Quem se dá ao luxo de escrever, hoje em dia, é em boa parte classe média alta que ainda se deslumbra com coisas como ultraviolência, sexo bizarro e música pop. Eu acho que essas coisas não significam nada, elas me entediam, ou nem isso. Sinto falta de uma literatura que investigue coisas mais profundas, a sensibilidade da nossa geração, toda essa loucura fudida de internet, velocidade, tecnologia digital, perda de subjetividade, sociedade espetacular, como uma geração se locomove nesse meio tão bizarro que é o nosso mundo hoje em dia. Ninguém parece querer digerir isso, investigar os medos da nossa geração. Ficam batendo punheta com exercícios de estilo sem propósito nenhum, remoendo situações desgastadas. Eu tenho essa impressão. E nossa intenção com a LDM é captar autores que fujam disso, e fazer o que for possível para publicar livrinhos independentes e levar eles até um punhado de livrarias legais e formadores de opinião, pra ver no que dá.

P - Quando, onde e como está sendo criada a Livros do Mal? De onde vieram o recursos para a sua criação? O que vocês estão fazendo para viabilizá-la financeiramente?

DG - A Livros do Mal não é uma editora no sentido formal, não temos empresa registrada. É mais como um selo, uma marca, sob a qual queremos realizar edições independentes. Nosso objetivo primário, acredite, não é ganhar dinheiro. É ver livros sendo criados, distribuidos e lidos, e tudo que queremos é recuperar o investido pra publicar ainda mais gente. Claro, se a saída dos livros for excepcional e entrar uma grana maior que o esperado, podemos botar algo no bolso. Mas é secundário. Temos nossos empregos cansativos para nos sustentar. A Livros do Mal é diversão. Resolvemos estrear a LDM com dois livros de contos, o meu e o do Mojo. Fizemos um projeto pro FUMPROARTE (financiamento cultural da Prefeitura de Porto Alegre) e passamos em primeiro lugar. Com isso, eles financiaram 80% do projeto, ou seja: a impressão dos livros. Todo o resto - registro de domínio, custos de correio, cartazes, coquetel, convites - a gente está tirando do bolso. A tiragem é de 600 exemplares de cada livro. Vendendo uns 60% disso, recuperamos toda a grana investida. É essa a situação, a grosso modo. Ainda não sabemos com certeza o que vai rolar, mas estamos confiantes. Quem sabe a gente consegue uma parceria de distribuição com alguma editora por aí, sei lá. Estamos fazendo a distribuição com ajuda de amigos nossos em outros estados.

P - Preparação dos originais, revisões de provas, diagramação, composição, impressão, capa, acabamento, divulgação para a imprensa. Como vocês estão tocando tudo isso? E a distribuição dos livros, como será feito no restante do país?

DG - O Mojo revisou o livro dele, eu revisei o meu. Bolamos as capas juntos, no computador da minha casa, com base em ilustrações do Pilla. Eu diagramei os livros, finalizei as capas e toquei todo o esquema de gráfica. Eu compilei um mailing e nós mesmos estamos mandando livros e releases para vários lugares, e indo de livraria em livraria tentando vender os livros em consignação. Ou seja: eu, Mojo e Pilla fizemos tudo, mesmo. Temos umas amigas, a Gaby e a Laura, ajudando a conseguir apoio pro coquetel. E pra distribuição, como eu disse, contamos uma rede de representantes em várias cidades, que tentarão vender os livros pra nós. Tudo na base da parceria trimmmassa.

P - Qual a sua opinião a respeito de uma suposta literatura unida em torno da Web? E sobre blogs (diários virtuais atualizados diariamente)?

DG - Blogs e fanzines por e-mail, de uma maneira geral, caem numa redundância abominável. É o fenômeno dos diários coletivos: uma mistura de exibicionismo com fuga da realidade, através da elaboração de uma persona virtual. Sintoma de uma geração de pessoas carentes, confortáveis o suficiente para perder horas por dia no ICQ, crentes de que a tela realmente reproduz o mundo. É bastante curioso do ponto de vista antropológico e psicológico, mas literariamente é lastimável. Claro que existem sempre exceções. Leio uns 2 ou 3 blogs de vez em quando, que acho legais, porque seus autores têm o que dizer e sabem escrever bem. Leio muitos zines por e-mail, sempre tentando extrair coisas legais, e dá pra achar bastante coisa. Mas a tal da literatura em torno da web sofre muito da famigerada auto-indulgência. Neguinho acha que é escritor só porque digitou qualquer merda na net, ou teve um texto qualquer publicado por um zine. Não é por aí. O valor artístico, a qualidade literária, está em outro lugar, dentro das pessoas, e não na internet. É preciso estar atento a isso, é só.

P - Pergunta-clichê: algum conselho para quem está começando a escrever?

DG - Resposta-clichê: ler pra caralho, heeehe. E acho legal que se use a internet como laboratório, como meio de divulgação. Isso funciona e é muito interessante. Mas não sei dizer muito mais que isso. Tem o tal do talento, também. Talento sempre é bom. E a prática, que pode catalisar o talento.