Clipagem
Rascunho Diálética dos pampas Mais duas crias da 'Geração Cardosoline' dão à luz seus filhotes: a cantora Clarah Averbuck joga as fichas no romance Máquina de pinball enquanto o contabilista Marcelo Benvenutti enumera setenta Vidas cegas
Era uma vez um contista que não sabia contar histórias. Assim como há poetas que não fogem à síndrome da metalinguagem palavrista nem ao infantil mal da concretite, este contista não conseguia contar uma história utilizando os ingredientes básicos: fábula, trama, condução, clima, personagens. Em seu texto abundavam jogos de linguagem, narrativas desconstrutivistas, citações a gênios obscuros, frases espirituosas, subjetivismo crônico, dicionarite aguda - e, doença incurável, muita chatice. O contista acima é a antítese do eu-narrador de Vidas cegas, livro de estréia de Marcelo Benvenutti. Ou melhor diria Carlo Manero, Dorian Wild, Catherine Cheveux, El Comanchero, Guilherme Portões Neto, The WWW PsychoLover, Actti Jahix, Debra Hansen, John Carnegie, Hall, José de la Revolución, Cheyenne, Giuseppe Capeletti, John Fitzgerald Du Pont etc etc... Além do Cardosonline, o zine de Benvenutti, Folha Mutante (www.geocities.com/SoHo/8382/), também era cavalo destes pseudônimos do contista. A volúpia pessoana do gaúcho o fez desmembrar a imaginação numa série inumerável de personagens: daí, o título de cada narrativa de Vidas cegas principiar com um "A vida de...". Entretanto, após leitura atenta, não se consegue divisar se Benvenutti - que narra quase sempre na terceira pessoa, mantendo um olhar totalizador da história, ainda que acompanhando suas personagens com um fraterno afeto - é um multinarrador, com diversas personas literárias coexistindo em seu "auto-sistema", ou um único narrador fragmentado em inúmeros microentes narrativos - no que o aproximaria do estilo minimalista de escritores como o mineiro Evandro Affonso Ferreira. Lírico, fantasioso e parabólico, o estilo de Benvenutti, porém, é sempre rude. Ele não faz questão de experimentar a linguagem - e até explicita isso, no conto "A vida da pausa": "tuas vidas são curtas e tristes. Teu vocabulário é curto e tosco". A única experimentação a que Benvenutti se permite são neologismos meio bestas tipo "cramir" e "frungir" (ao final do livro, um glossário explica essas expressões como "crer que ama" e "fingir que ama"). As frases são quase invariavelmente na ordem direta; as descrições, pobres; a condução, monótona. Contudo, onde poderiam ser lidas como falhas, no texto do gaúcho essas peculiaridades chegam como um estilo hiperdistinto, mix de Sid Vicious e Apollinaire. Monocórdica, sua narração é lisergicamente hipnótica. Quando se percebe, três horas se passaram e você devorou o livrinho inteiro. FADAS MOFADAS Benvenutti daria uma ótima testemunha para um crime. Ele deve ser daquelas moscas de bar que passam horas segurando um copo de Dreher e viajando nas idéias dos passantes com a caneta pensa sobre um guardanapo sujo. "Vida do carrasco" é um estranho conto, de perfeição a que poucos narradores têm acesso - sujeitos do reino da fábula, Esopo, Millôr Fernandes. Conta simplesmente a história de um sujeito sincero que, por não saber mentir, é encerrado numa cela. Tem como vigia um carrasco, homem que sofria por seus filhos se envergonharem dele - mas que se orgulhava de ser um artista em seu trabalho, e que por causa disso jamais o deixaria de fazer. O preso, que gostou do carrasco ser o único homem sincero que encontrou na vida, lhe diz: "faça o que tem de fazer". Emocionado, o carrasco abre-lhe as portas da penitenciária. Mas o preso prefere ir ao pátio esperar pela execução: "não permitiria que o carrasco se deixasse levar pela mentira da piedade. Ele agora tinha um amigo. E morreria por isso". Os paradoxos narrativos se repetem com a simplicidade terrível dos microcontos de Kafka. Alguns chegam a ser cinematográficos, como "A vida dos búfalos", em que uma insurreição de búfalos nas trincheiras da Segunda Guerra, na fronteira da Bélgica com a Alemanha, é contada no tom realista mágico de um Garcia Márquez tosqueado. Mas predominam histórias quase puras, em que só existe narração. Um traço curioso é que nem mesmo o conteúdo mais dramático encontra uma forma eloqüente: entijolada em parágrafos, a escrita de Benvenutti, apesar de, em alguns momentos, parecer emocionar-se, é quase sempre burocrática, linear, plana. Esse estilo a frio joga uma opacidade sobre o texto responsável tanto por sua verossimilhança quanto por seu encanto de mofada história de fada. Melhores momentos: "A vida de ninguém", sobre uma cidade habitada só por celebridades, subitamente invadida por um anônimo; o extraordinário microconto "A vida da cigarra", que lembra o guatemalteco Augusto Monterroso; o surrealista "A vida da nuvem inglesa"; a comédia de erros de "A vida do amor"; e "A vida da pausa", em que o narrador se justifica: "Não existe felicidade. Não existe lógica. Existem apenas as vidas cegas. Tateando no escuro. Procurando o sentimento perdido. O olhar da criança. O olhar". Uma suma estética dessa antologia talvez esteja em "A vida de Tiago", história de um carroceiro que recolhe latinhas e uma cadeira de escritório cor de vinho. Como uma equação fractal, com somente esses dois elementos - latas e cadeira - Benvenutti destrincha sete histórias, que, condensadas em Tiago, resumem o espírito do livro: "vidas alheias jogadas em uma carroça".
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Todos as ilustrações © Copyright 2001-2003 Guilherme Pilla de Araújo. Porto Alegre, RS, Brasil. |