Clipagem
Rascunho
Quem se espantou com o vigor da estréia de Daniel Pellizzari, em Ovelhas que se
perdem no céu, tem novos argumentos de estranhamento. O Livro das Cousas que
acontecem (115 páginas, ilustrações de Luiz Pellizzari) abre a coleção Tumba do
cânone, da jovem e independente editora gaúcha Livros do Mal, e mostra que o pior
recém começou, sendo que o pior é o melhor. As 14 histórias revelam uma maior
unidade temporal e de estilo, qualidade de ritmo e encadeamento do que a primeira
obra. E é bem mais agressiva, exposta num tom ultra-realista. Se o realismo mágico
exige um pacto de magia, a crença aqui é instaurada na absoluta descrença. Ninguém
acredita em nada e, portanto, tudo é possível. Os personagens – outsiders – são
pedestres da loucura. Caminham à toa pelas suas idéias, neuroses e lembranças.
Passaram dos limites, não se dão conta e fracassam ao comunicar seu desespero.
Inconseqüentes, resvalam na autodestruição do desejo. O desejo subordina as ações
singelas aos extremos da carência. Um funcionário de sex shop limpa as cabines de
masturbação e, de repente, descobre o sabor doce do esperma e procura,
ensandecido, o dono da golfada. As circunstâncias, as normas e as convenções
desaparecem no ato de busca. O que existe é apenas a obsessão. Como num filme
de Robert Altman, as histórias conversam entre si de forma invisível e casual. Um
aposentado convive com estranhos buracos que falam no corpo. Uma cidade
desaparece do mapa. Causa-consequência não funciona nesses parâmetros,
unicamente conseqüências da conseqüência. Os episódios começam do nada, de
uma mudança absurda de ordem, de uma novidade. São inverossímeis e coagem
pelo exagero. Mas é preciso não confundir com humor grotesco e negro. Não há
gargalhadas pontuando as piadas. O risível é comovente, fazendo a sensibilidade
adquirir uma posição crítica, um mal-estar permanente, perquirindo a validade da
rotina (as tragédias irrompem à medida em que as alucinações ganham uma rotina).
A mulher que mata as pessoas num simples bater de botas (metáfora popular da
própria morte) não consegue conter a autoridade da fantasia e do ego. Em Pellizzari,
mundos virtuais disputam as possibilidades das fábulas. A narração segue um andar
delicioso, de desprendimento, que honra os epítetos de um Campos de Carvalho.
Veja o fragmento do conto Modo de dizer: "Francisco, um homem de sorriso
magro, cabelo líquido e fidelidade nula". Para ganhar dessa síntese, somente os
"ácaros sonolentos".
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Todos as ilustrações © Copyright 2001-2003 Guilherme Pilla de Araújo. Porto Alegre, RS, Brasil. |