Clipagem


Jornal Zero Hora
28 de abril de 2003
Por Cíntia Moscovich


Um estranho entre estranhos

No início, o protagonista conta um sonho recorrente: vê-se deitado sobre um colchão, gerando, num movimento aterrador de carnes, um outro ser idêntico a si mesmo. Ambas as criaturas são, um para o outro – e para aquele que sonha –, perfeitos estranhos.

Pode parecer complicado, e é mesmo, porque o outro, qualquer que seja, sempre será um dos grandes mistérios do humano. A idéia de que um abismo separa os seres sobre a Terra é o mote de Até o Dia em Que o Cão Morreu, livro que Daniel Galera autografa hoje à noite.

Tendo estreado na literatura com um elogiado volume de contos, Dentes Guardados (que, em tradução a ser lançada em breve na Itália será chamado Manuale per Investire Cani e Altri Racconti), de 2001 – ano em que ele e Daniel Pellizzari lançaram a editora Livros do Mal –, a obra marca a estréia do autor na narrativa longa, integrando a coleção Tumba do Cânone. Aos 23 anos, paulista radicado em Porto Alegre, formado em Publicidade e Propaganda, Galera elabora um texto que tem marcada influência das idéias do filósofo e agitador surrealista Georges Bataille, principalmente aquelas da obra O Erotismo, na qual o originalíssimo mestre parisiense, morto em 1962, afirma – e se pede perdão pela pobreza da síntese – que o erotismo é a tentativa de fusão do que está destinado a viver, e a morrer, separado. Mesmo sofisticado em seus referenciais teóricos, embebido do desespero bataillano, Galera foge da afetação: o máximo que se permite é uma epígrafe do francês, da qual, coerentemente, emana toda a obra.

Egresso da Oficina de Criação Literária que o escritor Luiz Antonio de Assis Brasil mantém na PUC, o autor tem a pegada do conto, que exige concisão máxima, fato que, em sentido mais amplo, é o grande desafio e mérito da literatura. Dono da técnica narrativa, imprimindo ritmo ágil e com cortes de precisão cirúrgica – nunca o termo foi tão adequado –, valendo-se de uma linguagem seca, avessa a qualquer ornamento, tudo costurado pelo tom do desconcerto e do fastio da vida, a novela (embora o próprio autor refute a classificação) é narrada por um rapaz de seus 25 anos, recém- formado em Letras, fluente em inglês e em russo. Sem nenhuma vontade de arranjar trabalho, morando no 17º andar de um edifício do centro de Porto Alegre com vista para o Guaíba, torrando a mesada que lhe dá o pai em cigarros e em muitos (muitos) galões de cerveja e similares alcoólicos, a criatura criada por Galera é um sujeito blasé. Fascinado pela morte, para esta criatura cujo nome e rosto não se conhece, simplesmente não há sentido em buscar sentido para a vida. O equilíbrio da inércia periclita quando, na história, entra um cachorro – Churras –, recolhido depois de (mais) uma noitada de bebedeira. E tudo muda mesmo quando surge a figura de Marcela, uma linda modelo, que logo encara com todo o ânimo as aventuras, sexuais principalmente, que lhe são propostas. Turning point da narrativa, Marcela, mais do que o ideal romântico de amor, representa o contraponto à inação do protagonista. Que se debate em desespero contra a própria impossibilidade de afeto – desespero e impossibilidade que vão até o desenlace que, único escorregão do livro, pode parecer redentor em demasia. Mas que, mesmo assim, aponta alguma esperança, ainda que frágil e tardia.

Com orelha do escritor João Gilberto Noll e contracapa assinada pelo poeta Fabricio Carpinejar, enriquecida por ilustrações de Nik Neves, Até o Dia em Que o Cão Morreu é obra para se ler de uma sentada só. Mesmo que seja com a amargura do protagonista, aquele que, de repente, descobre que é tarde demais para morrer jovem.