Hotel Hell

Capa
Hotel Hell


Autor Joca Reiners Terron
Ilustrações Félix Reiners
Gênero Novela
Coleção Tumba do Cânone
Ano 2003
Especificações 128p. ; 12,5x21cm
Preço R$ 20,00 (como comprar)
Sobre o autor Joca Reiners Terron é escritor, designer e editor, autor dos livros de poesia "Eletroencefalodrama" (1998) e "Animal Anônimo" (2002) e da novela "Não há nada lá" (2001), todos publicados pela editora Ciência do Acidente, criada e conduzida por ele mesmo. É um dos escritores brasileiros incluídos na coletânea "Geração 90: Transgressores" (2003), organizada por Nelson de Oliveira e publicada pela editora Boitempo.



Trecho do livro
"As crianças brincam lá embaixo, no playground. No horizonte, encobrindo a cordilheira de prédios, a Primavera se aproxima, adiantada. E tudo pára.

Desço então os quinhentos lances da escadaria num só impulso. Quando chego ao térreo é possível ver seus primeiros raios encobrindo o edifício enorme a três quarteirões daqui. Em meio aos carros, minha roda direita esbarra num sedan. O alarme é acionado, mas sigo em frente, desviando do latão de lixo no caminho, através da garagem. A Primavera está chegando, fora de hora. Corro o mais que posso, um filete de suor desliza-me pela têmpora direita, pingando no relógio de pulso — 23h30 — totalmente adiantada. As luzes da área de lazer do hotel estão acesas, e posso ver os adultos com crianças nos braços, fugindo da Primavera, os brinquedos abandonados. Ela não nos avisou, veio muito antes do previsto. É possível enxergar a mudança de cor da quadra de basquete antes amarela, agora um cinza escuro repentino a cobre pela metade. Continuo correndo, resgato energias não sei de onde e aumento a marcha. Quase atinjo a grade do playground e posso ver nossa filha, sozinha, no topo aceso da roda-gigante. As luzes do carrossel deixam tudo vermelho, e suas tranças balançam na tempestade. Ela observa o céu, paralisada — reconheceu a Primavera. Entro no recinto a uma velocidade inimaginável para uma cadeira de rodas. O chão desliza sob os aros numa rapidez estonteante, e caio numa espécie de vertigem, enquanto ergo os olhos pras calças vazias, lembrando de minhas pernas, do tempo em que existiam, quando a Primavera não chegava fora de hora, há muito tempo atrás. Nossa criança está indefesa sob suas nuvens, Primavera. Estendo meu braço para perto do tronco da menina. Ela pressente minha presença, mas tem olhos apenas para a Primavera. As luzes do carrossel, as luzes. A Primavera sobre nossas cabeças, o olho azul de nossa garota turva. As narinas ofegantes dos cavalinhos. Ela cai em meu colo.

Giro a cadeira então e bato em retirada. A Primavera já ocupa quase todo o céu. Seus extremos negros e ferruginosos podem ser vistos nas nuvens, enquanto fugimos. A Primavera, sinto o coraçãozinho pulsar em minhas mãos. Vejo um pai com sua criança já seguros, abrindo a porta do edifício para que entremos. Ouço a torcida dos hóspedes do primeiro andar. Eu corro, não penso em nada, apenas aperto o acelerador e corro, até estarmos a salvo, protegidos da Primavera. Exausto, entrelaço os dedos nos cachos do cabelo de nossa filha e me lembro de quando ululávamos qual bororos ao Sol. Isto muito antes da Primavera adiantar-se pela primeira vez e bem depois do inverno deixar de existir. Subindo pelo elevador panorâmico, vejo a saliva ácida da Primavera atingir a tabela da quadra. Ela continua temperamental. Ouço o plástico derreter sobre o cimento. Assim como minhas pernas, tudo desaparece sob a precipitação de sua chegada."



O que foi dito
"Em Hotel Hell se misturam automóveis em alta velocidade, assaltos a mão armada, cenas no metrô, seqüestros, drogas, agiotas, churrascarias – e não fossem as churrascarias, bem que poderíamos estar em um thriller de Hollywood. Essa semelhança em nada perturba um autor como Terron que, ao contrário, quer mesmo trabalhar com esses dejetos simbólicos em que a sociedade industrial avançada, da internet e dos satélites, se encarrega de nos atirar. Então, se sua novela às vezes beira o pornográfico, ou a grosseria, ele também não se esquiva, já que está lidando com materiais retirados diretamente do mundo real, que estão aí, à vista de qualquer um. Basta ligar a TV, ou dar uma olhada pela janela. Ou abrir um livro como a asfixiante novela de Terron" (José Castello, Nomínimo)

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"(...) Hotel Hell é bastante coerente com seu projeto de "bestializar" a vida, não para mostrar sua naturalidade, mas para descrever seu absurdo e a falta de lógica no arranjo social. A máquina de assar frangos é tratada como um oráculo e, em determinado momento, surge "o canto do messias assado", na língua do có: "Cócómece a pensar: quantos dizem o que pensam e cócalam o quecó sentem? Cóquóquase todos aquietam e cócólocócam o cócóração de cócoras (...). Macacócós não morrem e frangos são trucidados em verdadeiros holocócócaustos, presos em granjas de cócóncentração." (...) O Hotel Hell aparece depois de um dos incontáveis narradores, mas talvez o mais importante deles ("um bêbado completo"), pegar um táxi e pedir para ir para o inferno. O motorista, então, responde: "Ah, te deixo no Hotel Hell, conhece?", um hotel "grande como uma cidade". A partir de então, novas cenas evoluem como um sonho, através de associações, em que se misturam os animais mais bisonhos, as drogas mais escatológicas e eficazes e outros delírios, nem sempre associados a bebidas e químicos. Mas o Hotel Hell não é uma metonímia da cidade, é a própria cidade de São Paulo, com seu rio estático, o Tietê, cujas margens é que se movem." (Haroldo Ceravolo Cereza, O Estado de SP)

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"Perturbador e às vezes propositadamente confuso, o livro de Terron lembra um sonho – ou um filme de David Linch. As coisas vão acontecendo sem muita conexão entre si, mais se acumulando que propriamente se sucedendo. Os elementos das histórias se misturam, passando de uma a outra sem muita clareza. A narrativa em primeira pessoa – em momentos se aproximando da técnica do fluxo de consciência – confunde ainda mais os eventos, criando efeitos interessantes até o leitor se situar. Ao mesmo tempo, a brevidade de cada história-capítulo arrasta as sensações e idéias de uma parte do texto – e do hotel – para outra, abrindo possibilidades que contos isolados não permitiriam." (Rodolfo S. Filho, A Tarde)

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"O mundo de personagens de Hotel Hell é algo extremamente familiar, mesmo sendo povoado por velociraptors que comem merda, macacos sem escrúpulos e homens tatuados que andam nus pelas ruas sujas de São Paulo. É na descrição das situações mais pitorescas concebíveis pela mente humana que Terron aproxima a angústia dos seus seres folclóricos a da nossa existência capitalista e extremamente desesperada." (Bruno Galera, Revista Bala)

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"Com uma linguagem altamente original, caótica, dosagem fantástica e personagens bizarros muito bem criados, dentro de um ambiente imaginativo denso e agonizante, o livro de Joca talvez peça uma segunda e ainda terceira leitura. A primeira para sentir um misto de estranhamento e deslumbramento frente a obra. A segunda para interpretarmos seu significado de desilusão frente à selvageria de uma São Paulo que, pisada e repisada, ganha proporções épicas. E finalmente, a terceira, para prestarmos atenção na peculiaridade da narrativa do autor." (Rodrigo Moreno, Ócio do Caramujo)

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"Um dos melhores nomes da novíssima literatura brasileira, o paulista Joca Reiners Terron asfixia o leitor em sua narrativa propositalmente entupida de referências urbanas, como assaltos, drogas, trânsito infernal... O inferno que está no título do livro não pode ser organizado, e é dessa desorganização e sujeira que Joca extrai a força de seu texto e algumas doses de poesia. Embora editor da Ciência do Acidente, Joca lançou este livro pela gaúcha Livros do Mal, abrigo de outros bons nomes contemporâneos." (Portal Literal)