Até o dia em que o cão morreu
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Daniel Galera
Nik Neves
Novela
Tumba do Cânone
2003
128p. ; 12,5x19cm
R$ 20,00 (como comprar)
Daniel Galera nasceu em São Paulo, em 1979, mas sempre viveu em Porto Alegre. É escritor e um dos editores da Livros do Mal. É tradutor, diagramador e eventualmente jornalista. Estreou na literatura em 2001 com a coletânea de contos Dentes Guardados.
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"E então lá estava o meu antigo quarto, no mesmo estado em que eu o havia abandonado tantos meses antes. O mesmo material sobre a escrivaninha, os móveis na posição de sempre, o videogame empoeirado debaixo da TV, uma extensão do telefone próxima à cabeceira da cama. O que me repelia tanto nisso tudo, mesmo? Eu já tinha esquecido. Agora eram objetos inofensivos, nem bons nem maus, eram apenas inúteis. Não mudei nada. Apenas reacomodei meus livros em suas prateleiras e tirei um poster do Led Zeppelin da parede pra colocar o quadro que Seu Elomar pintara pra a Marcela.
Foram dias esquisitos. Na tentativa desesperada de me ocupar, retomei o hábito de ler. Lia pelo menos quatro ou cinco horas por dia, e depois ia pro computador do escritório, ver putaria na internet. Lentamente, comecei a escrever o esboço de um projeto prum mestrado em Literatura Comparada. Mas não adiantava ter pressa, ainda faltavam alguns meses pro início do prazo de inscrições na Universidade Federal. Telefonei pra velhos professores e encontrei um que estava disposto a me orientar. Nas horas mais vazias, eu caminhava sem objetivo pela Ipiranga, fumando e tentando ter alguma idéia. Nos primeiros dias, o cachorro me seguia, acompanhávamos um ao outro, num transe semelhante. Era a companhia ideal pra mim. Total ausência de palavras. Apenas alguns olhares cúmplices, e mais nada. Assim como ele, eu só queria me adaptar à civilização na medida em que isso era necessário à minha sobrevivência.
Depois de três semanas, consegui um emprego, novamente como professor de inglês num cursinho desses pra adolescentes. O trabalho só começaria na semana seguinte, então tive mais alguns dias de ócio pela frente. Aos poucos, recomecei a ver televisão. Agora existia até mesmo um canal chamado Canal do Boi, que ficava alternando imagens de bovinos e informações sobre datas de leilões agropecuários, embaladas por melodias new age ao fundo. De vez em quando entrava o depoimento de algum veterinário, como propaganda prum determinado remédio. Aluguei DVDs de clássicos que eu nunca tinha visto. Permanecia uma hora inteira mergulhado dentro da banheira, escutando música, até a água ficar fria. E especialmente ali, dentro da água, eu me sentia cansado. Velho, em certo sentido. No sentido de que era tarde demais pra morrer jovem."
"(...) o autor tem a pegada do conto, que exige concisão máxima, fato que, em sentido mais amplo, é o grande desafio e mérito da literatura. Dono da técnica narrativa, imprimindo ritmo ágil e com cortes de precisão cirúrgica – nunca o termo foi tão adequado –, valendo-se de uma linguagem seca, avessa a qualquer ornamento, tudo costurado pelo tom do desconcerto e do fastio da vida, a novela (embora o próprio autor refute a classificação) é narrada por um rapaz de seus 25 anos, recém- formado em Letras, fluente em inglês e em russo. Sem nenhuma vontade de arranjar trabalho, morando no 17º andar de um edifício do centro de Porto Alegre com vista para o Guaíba, torrando a mesada que lhe dá o
pai em cigarros e em muitos (muitos) galões de cerveja e similares alcoólicos, a criatura criada por Galera é um sujeito blasé. Fascinado pela morte, para esta criatura cujo nome e rosto não se conhece, simplesmente não há sentido em buscar sentido para a vida. O equilíbrio da inércia periclita
quando, na história, entra um cachorro – Churras –, recolhido depois de (mais) uma noitada de bebedeira. E tudo muda mesmo quando surge a figura de Marcela, uma linda modelo, que logo encara com todo o ânimo as aventuras, sexuais principalmente, que lhe são propostas. Turning point da narrativa, Marcela, mais do que o ideal romântico de amor, representa o contraponto à inação do protagonista. Que se debate em desespero contra a própria impossibilidade de afeto – desespero e impossibilidade que vão até o desenlace que, único escorregão do livro, pode parecer redentor em demasia. Mas que, mesmo assim, aponta alguma esperança, ainda que frágil e tardia" (Cíntia Moscovich, Zero Hora)
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"O que parecia uma história de amor se torna uma espécie de fábula sobre a decadência, como diz na orelha João Gilberto Noll: 'A história de um jovem que se exaure antes da maturidade, se exaure pela ociosidade massacrante, sem saída à vista, se exaure porque o amor lhe confere apenas soluços secos, gozos avulsos'. Quem sabe por isso emane do livro uma aura que lhe confere, desde já — e sem favor nenhum —, o status de clássico " (Ronaldo Bressane, O Globo)
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"Com uma simplicidade segura, o texto se conectou diretamente com minha subjetividade e me fez esquecer de que eu tinha assuntos a resolver e pensamentos a formular. Isso é raro: um texto que o esvazia, que faz com que você deixe de ser cavalo de santo de milhares de teorias e se transforme em LEITOR. (...) Recentemente, o mesmo tipo de emoção me tomou ao assistir ao filme Samsara: o sentimento de "tudo a fazer". A vida zombando das nossas escolhas e nos empurrando pra situações inesperadas, prazerosas e, às vezes, quase insuportáveis. Mas aí você respira e, em vez do desespero, ri e diz: "me derrube se for capaz". Um jogo, uma dança. (...) [ ] seu texto escapa do desejo por estantes e púlpitos e foge, indomado, pra discutir a atualidade no que ela tem de mais prosaica e, por isso mesmo, importante. Assim, 'Até o dia em que o cão morreu' tematiza o corpo, nesta sociedade que tenta obsessivamente controlá-lo, extinguir as doenças, "equilibrar" os estados mentais, esterilizar as secreções. Uma sociedade que já incorporou as lições da eugenia, graças ao PAVOR de perceber o quanto o corpo foge dos controles que criamos." (Eduardo Fernandes, Revista Fraude)
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"Galera escreveu um livro otimista, evitando julgamentos e mensagens pretensamente edificantes. Contemporâneo sem cair na citação de bandas e produtos que aflige a literatura de muitos dos seus colegas de geração, “Até o Dia em que o Cão Morreu” é um exame sutil e muito bem feito das opções que são exigidas de pessoas de uma certa idade, quando integração e desistência são alternativas igualmente válidas." (Rodolfo S. Filho, www.claque.com.br)
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"Se o enredo parece simples, o estilo cortante de Galera não o deixa cair no lugar-comum. Nesta sua primeira incursão (publicada) pela narrativa mais longa, em que abandona os curtíssimos contos da época do COL e do primeiro livro, Dentes Guardados, Galera mostra que domina não apenas o “texto-tiro”, aquele que pega o leitor de forma rápida e fulminante. Galera mostra aqui que tem fôlego para nos tirar o fôlego. Não a cada página ou capítulo, mas a cada parágrafo, surpreendendo e alertando-nos de que a vida é muito mais estranha, complexa, difícil e arrebatadora que uma novela sobre o amor." (Renata de Albuquerque, www.literaturaonline.com.br)
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"Narradas de maneira vertiginosa com impressões cinematográficas, lemos as descrições do pesadelo num só fôlego, para depois, numa mudança de ritmo, vê-lo sendo acordado por Marcela advertindo-lhe da presença de um bicho arranhando a porta. O bicho é seu cachorro, a Marcela, companheira com aspirações incompatíveis com o niilismo do rapaz, que vive nas alturas de um edifício frente às águas do Guaíba, alheio ao tempo frenético da Porto Alegre lá debaixo. Um belo retrato da geração atual, o romance de Galera carrega um lirismo apaixonado ao traçar o relacionamento entre dois jovens que se complementam e se consomem mutuamente na dramaticidade de uma solitária angústia existencial. Chegando no final do romance, Seu Elomar, porteiro do edifício, indaga: Esse pessoal mais novo, da idade de vocês, tá sempre assim meio nervoso, meio perdido, né? E Marcela, perto do bonito desenlace da trama, compreende: Sabe, agora eu entendo um pouco mais a razão de tu querer ficar tão isolado lá em cima. É tudo a mesma coisa, isolado ou mergulhado numa multidão, no trânsito, no trabalho, a solidão é sempre a mesma." (Rodrigo Moreno, Ócio do Caramujo)
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"Estou lendo, e admirando pra burro, o estilo de um garoto chamado Daniel Galera.
O menino gaúcho tem apenas 23 anos e escreve como um velho endemoniado.
Até o Dia em que o Cão Morreu, da editora Livros do Mal, merece uma visita.
É escrita de cachorro grande." (Carlos Castelo Branco, Revista Caros Amigos)
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