Dentes Guardados

Capa
dentes guardados


Edição esgotada.
Autor Daniel Galera
Ilustrações Guilherme Pilla
Gênero Contos
Coleção Contra a Capa
Ano 2001
Especificações 88p. ; 12x18cm
Preço R$ 15,00 (como comprar)
Sobre o autor Daniel Galera nasceu em São Paulo, em 1979, mas sempre viveu em Porto Alegre. É escritor e um dos editores da Livros do Mal. Trabalha com jornalismo, literatura e internet. Também é autor de Até o dia em que o cão morreu, publicado pela Livros do Mal.



Trecho do livro
"Eu tava no bar do Zé comendo uma coxinha de galinha e tomando uma cerveja, nada que eu já não tivesse feito antes. Havia, como de praxe, meia dúzia de pescadores bêbados atirados pelas mesas, uns rindo da cara de outros, outros jogando dominó, um último cambaleando entre as duas mesas de sinuca, coçando o rosto inchado. E meio que do meu lado, a pouco mais de um metro, um outro pescador, maior que todos os outros, mais feio que todos os outros, sacudindo graciosamente um carrinho de bebê dentro do qual havia um bebê. O carrinho era novo, o bebê era branquinho, limpo, sorridente e silencioso. Eu já tinha visto muita coisa estranha no bar do Zé pra me espantar com um carrinho de bebê com um bebê dentro, no meio daquele boteco escuro, velho, ocupado exclusivamente por homens rudes, grotescos, a maioria miseráveis, todos bêbados. Continuei mastigando minha coxinha. Mas a presença do bebê começou, finalmente, a me causar uma certa estranheza, e eu tirei os olhos do balcão para encarar aquele pequeno ser nos olhos. O pai também encarava a criança, com uma expressão bobalhona. Então eu olhei pro sujeito e falei uma coisa que eu nunca imaginaria a mim mesmo falando pra ninguém, muito menos prum pescador bêbado. “Que criança linda”. Ele sorriu e se inclinou pra cima de mim, soltando um bafo alcoolizado e morno no meio do qual consegui distinguir o nome da menina, que já esqueci. Então ele começou a contar toda a história do nascimento da criança, era a segunda filha dele, a outra tinha cinco anos de idade, nesse tempo todo separando as duas a mulher dele tinha sofrido três abortos naturais, havia ficado doente, ele trabalhou feito um cachorro pra conseguir pagar todos os médicos e hospitais, mas que agora a filha dele tinha finalmente nascido, e que era muito esperta e muito linda e etc, e eu olhei pra ela no carrinho e notei que era mesmo uma das crianças mais lindas que eu ja tinha visto. O cara parecia fascinado em ter encontrado alguém pra escutar as coisas que ele tinha pra dizer, e depois de todos os detalhes do nascimento da filha começou a falar do resto da família dele, a mãe dele tinha tido cinco filhos, duas gêmeas e três trigêmeos, ele era um dos três e mais um monte de coisa, e eu comecei então a me sentir realmente desconfrotável, a coxinha não terminava nunca, a garrafa de cerveja não tava nem na metade, resolvi que eu queria sair dali mas não tinha como, não tinha coragem de cortar o cara, pedir pra ele parar de falar, e a menina no carrinho olhando pra mim com olhos arregalados, tão bonita e perfeitinha quanto num comercial de sabonete Fofo, o carrinho levemente embalado por aquele ser enorme, tão tosco que eu só compreendia uma em cada três palavras que ele me dizia, mãos grossas com dedos rachados, a pele parecendo folgada por cima dos músculos vigorosos. “Quer ver como ela é forte? Bota o dedo na mãozinha dela pra ver como ela aperta, quero ver tu soltar”, ele me disse, e eu fui lá estiquei o indicador e coloquei na mão da criatura, ela não ligou muito, ignorou o meu dedo, ficou rindo sozinha, eu já não tava achando graça, eu tava desesperado pra sumir dali, engoli todo o resto da coxinha e comecei a beber a cerveja apressadamente, tirando uns trocos da carteira e ainda escutando o cara contar como a filha mais velha era inteligente, com cinco anos de idade sabia até atender telefone, sabia até tratar visita, assim que eu sequei a garrafa me virei e disse mais uma coisa eu nunca imaginei a mim mesmo dizendo pra ninguém, muito menos prum pescador bêbado, “Feliz Natal e um bom ano novo pro senhor”, do alto da empolgação ele me respondeu algo parecido, sorriu, eu sorri de volta, nervoso, muito nervoso, sem saber o porquê daquele mal-estar, e saí de lá quase correndo, depois corri, como se estivesse fugindo de um tiroteio."



O que foi dito
"Em Daniel Galera, 22, há contos bons. "Os Mortos de Marquês de Sade", em particular, graças ao humor discreto ao narrar a visita de um grupo de jovens a um vilarejo gaúcho chamado Marquês de Sade, onde os adultos se comunicam "exclusivamente em alemão" e de onde os visitantes tentam trazer para casa, como lembranças, as lápides do cemitério. Há outros interessantes: "Subconsciente", "Amor Perfeito", "A Escrava Branca", "Manual para Atropelar Cachorros" e "Dafne Adormecida". E há um excepcional. Chama-se "Triângulo" e a sua qualidade talvez possa ser apreendida pelo fato de não se poder dizer nada (ou quase nada) sobre esse conto sem comprometê-lo ou estragá-lo. É um texto cuja autonomia é a sua condição. E isso é fundamental em literatura. Dá para dizer que "Triângulo" joga de uma forma traiçoeira com as pretensas identidades sexuais, com a relatividade dos desejos e dos objetos do desejo. Mas é pouco para defini-lo. O fato é que, ao pôr em questão as identidades sexuais, Galera ironiza por tabela o clichê da escrita de macho, aquela que se pretende mais autêntica por ser feita de suor e sangue. O autor se serve do estilo que pretende chegar mais perto da realidade ao falar duro -quando na verdade apenas mimetiza um maneirismo embrutecido e violento, que não é nem mais nem menos artificioso do que qualquer outro estilo que se decida usar para impor uma identidade- para confrontá-lo consigo mesmo. A graça de "Triângulo" é a relatividade que esse confronto revela. E a surpresa de um escritor estreante com consciência dos poderes subjetivos da literatura." (Bernardo Carvalho, Folha de São Paulo)

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"Daniel Galera anda no fio da navalha da ficção e confissão. A começar pelo título, tirado de Hilda Hilst, Dentes guardados estabelece diálogos com a tradição literária, mas cada uma das 14 histórias é atravessada por referências ao cotidiano de jovens intelectualizados e saudavelmente insatisfeitos com a vida. Isso se manifesta, é claro, em situações, mas principalmente no bom ouvido de Galera para registrar o coloquial sem descuidar da forma. Seus personagens são facilmente reconhecíveis, mas não decalcam a vida: são, por tudo isso, solidamente literários. Em seus melhores momentos, Dentes guardados retoma, sem redundância, os conflitos da masculinidade na ressaca do "liberou geral". Já que pode tudo, o que realmente se quer? "Escrava branca" pode horrorizar feministas, mas desarma habilmente todos os clichês, assim como o agridoce "Triângulo". A festa do sexo é levemente melancólica e não é raro que homens fujam de mulheres, movidos por perplexidade ou medo como em "Natureza morta" e "Alguma psicologia"." (Paulo Roberto Pires, Revista Época)

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"Refletindo o combate entre uma neurose enferrujada provocada pelo ambiente hostil do capitalismo e a erupção dos instintos humanos como uma ruptura brutal e efêmera com a civilização, as criaturas do autor vêem-se suspensas." (Rodrigo Moreno, Ócio do Caramujo)