Clipagem


Correio Popular - Campinas
maio de 2003
Por Carlota Cafiero


Crônica da vida em Porto Alegre

Seres humanos que optam por uma vida imprevisível sempre rendem boas histórias. Não se fixam a empregos, pessoas, projetos, e a vida corre numa deliciosa (e às vezes entediante) rotina de farfalhar de lençóis, cigarros no meio-fio ou na janela de um apartamento com vista para a cidade e copos de cerveja em botecos malcheirosos. Tudo isso sob as vistas de um cão, única companhia aceitável. Até o Dia em Que o Cão Morreu (Editora Livros do Mal, 128 págs., preço de capa de R$ 20), é o primeiro romance do gaúcho Daniel Galera e segundo da coleção Tumba do Cânone. Nascido em São Paulo, em 1979, Galera sempre viveu em Porto Alegre, onde trabalha com jornalismo e internet. Fundador da editora independente Livros do Mal – ao lado do também escritor Daniel Pellizzari e do ilustrador e artista plástico Guilherme Pilla –, estreou na literatura com a coletânea de contos Dentes Guardados (com publicação prevista para setembro na Itália).

Narrado em primeira pessoa, Até o Dia em Que o Cão Morreu traz ilustração de Nik Neves e é quase uma crônica da vida em Porto Alegre, tendo o rio Guaíba como cenário e a vida correndo solta pelas ruas e avenidas da cidade. O narrador, sem nome, é feliz à sua maneira: aos 25 anos, recém saído da casa dos pais e da faculdade de Letras, é vagabundo por opção. Vagabundo no sentido de levar uma vida marginal e não se preocupar com grana (até quando o pai pára de depositar a quantia necessária para pagar o aluguel).

Nutre um “saco cheio” por tudo e todos e, assim, prefere viver sozinho, no 17º andar de um prédio decadente, com vista para o rio Guaíba e grande parte da cidade. Gosta de chegar em casa depois de andar a esmo, beber cerveja e fumar na janela até atingir um estado meditativo e vegetativo. Não tem televisão ou telefone e o seu descaso pelas coisas alcança até um dos seus maiores prazeres: a leitura.

Um dia, um cão surge na história. Ele é encontrado quase morto, numa madrugada chuvosa, e levado ao apartamento. Carinho, cobertor e comida recuperam o animal, que também se torna freqüentador assíduo do prédio, assim como Marcela, uma linda modelo ruiva e sardenta que aparece de vez em quando para tomar banho, fumar baseado, transar e desabafar seus problemas e sonhos mirabolantes para o desinteressado anfitrião.

A moça batiza o cão e Churras e passa a interferir demais no cotidiano e nas emoções do narrador, mas aí é tarde demais para ele desistir.

Por mais diferentes que sejam o protagonista, Marcela e o cão, eles formam uma estranha unidade. Um é a extensão do outro, reforçando a máxima do escritor francês Saint-Exupéry de que somos responsáveis por quem cativamos. É o caso da escrita ágil de Daniel Galera, que cativa o leitor já nas primeiras linhas e o deixa suspenso na última página, esperando mais.