Clipagem


Jornal do Brasil
15 de fevereiro de 2003
Por Ronaldo Bressane


COUSAS DA VIDA

Nascer e viver a infância em Manaus e daí por diante habitar Porto Alegre deve dar em qualquer ser uma chicotada no sistema de acomodação neural. Em Daniel Pellizzari, 28, essa súbita mudança de temperatura criou um original autor. Um ano após publicar o primeiro volume de contos, Ovelhas que voam se perdem no céu, Mojo, um dos pioneiros em usar a internet como veículo e escritor mais tatuado da literatura brasileira, escanteia a maldição do segundo livro comparecendo com um exemplar mais bem acabado de sua bizarra contística: O livro das cousas que acontecem. Bizarra porque os temas de Pellizzari não são assim, digamos, freqüentes na literatura daqui. A começar pela filiação - um incerto surrealismo urbano, no Brasil visitado por raros escribas: Campos de Carvalho, José Agrippino de Paula, Murilo Rubião, Moacyr Scliar, Ignácio de Loyola, Nelson de Oliveira e mais meia-dúzia. A se pegar pelas [excessivas] epígrafes dos contos, o surrealismo - que, segundo uma corrente da crítica seria primo ou tio da literatura fantástica e do realismo mágico [se a gente tratasse do romance realista seria tão mais fácil] - é o elemento comum no cânone por onde entra o autor: Campos de Carvalho [cite-se duas, mil vezes], Lewis Carroll, Danil Kharms, Cortázar, Jarry, Beckett, Kafka, Gógol. Desse espectro heterogêneo já dá pra sacar a turma com quem o manauara/ portalegrense bebe.

SE BEBER, NÃO DIRIJA

Como as bebidas alcoólicas, o campo do, hum, metarrealismo tem variadas gradações, que produzem diferentes efeitos: da tonteria do maravilhoso [histórias de fadas, por exemplo] à chapação do fantástico puro [Kafka, presente], passando pela embriaguez do mágico [em tese, García Márquez]. Pellizzari trafega por esses rótulos com destreza de bebum profissional. Mas nem sempre os efeitos são benéficos; às vezes, a gratuidade com que narra o insólito traz alguma ressaca. Exemplos: em "Ana", um homúnculo emerge do espirro de uma contorcionista; "Modo de dizer" desenha a vidinha da solitária Maribel, que mata o que estiver à volta apenas batendo suas botas; em "Rancho carne", buracos aparecem do nada tragando as personagens. Fábulas urbanas, são contos bem-estruturados e divertidos. Contudo, lhes falta tensão - não à toa, são justo os contos mais maravilhosos da coletânea. Quando se aproxima do fantástico, o autor se sai melhor. O termo, na arquicitada formulação de Cortázar, caracterizaria certa "hesitação" entre real e irreal, jamais entregando ao leitor a certeza de que aquilo que é contado se trata de invencionice ou relatório. É o causo dos perturbadores contos gêmeos "Sêmen de outras pessoas" e "O próprio sêmen". O primeiro narra a vida de um funcionário de sex shops encarregado de limpar o esperma que os clientes deixam nas cabines de peepshows; o funcionário tem uma epifania ao ver uma cabine tomada por litros e litros de sêmen - e lhe vem uma súbita vontade de beber tudo. No segundo, um divorciado à procura de um novo apartamento sente-se impelido a masturbar-se em todos os imóveis que visita. Sem apelar para fantasias, alegorias ou explicações, aqui Pellizzari demonstra que o absurdo a contaminar o cotidiano pode ser muito mais corrosivo.

LÍNGUA SOLTA

Na linguagem, o autor não faz muitas experimentações. Sua praia vaga entre a coloquialidade beat e a precisão elegante de Scliar ou Veríssimo, pra ficar só nos gaúchos: o narrador [quase sempre na terceira pessoa] está preso às obsessões de suas personagens e, ainda que uma sutil ironia permeie cada frase, só o jeito mais limpo de descrever ações e pensamentos lhe interessa. Mesmo que isso seja meio fora do comum: "Já estava quase chegando na esquina de casa quando percebeu que caminhava por cima de centenas de envelopes", começa ele, direto, a melhor narrativa do livro, "Surpresa" - melhor porque simplesmente não é possível resumi-la numa frase. Mas, para definir a atmosfera, pode-se lembrar uma expressão usada por Davi Arrigucci para falar de Murilo Rubião: espanto congelado.

Merece destaque ainda a bela edição, ilustrada por um bestiário de seres híbridos - invenção do mano de Mojo, Luiz Pellizzari. É a sexta cria da Livros do Mal, editora que, no esquema punk do-it-yourself, Mojo abriu com o também escritor Daniel Galera e o ilustrador Guilherme Pilla. Embora irregular na fatura, esse O livro das cousas que acontecem é perigoso. Vem com aquela sensação de risco que só livros desacomodados trazem: fazer o leitor olhar o mundo à volta e se perguntar "E se...?".