Ovelhas que voam se perdem no céu
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Edição esgotada para compra pelo correio.
Daniel Pellizzari
Guilherme Pilla
Contos
Contra a Capa
2001
88p. ; 12x18cm
R$ 15,00 (como comprar)
Daniel Pellizzari nasceu em Manaus em 1974, e mora em Porto Alegre desde um pouco antes de completar dez anos. Filho de psiquiatras, perdeu algum tempo no curso de Psicologia da UFRGS, para desespero de seus pais. Buscando alegrá-los, tentou perder tempo em três outros cursos, mas foi distraído pelas cousas mais urgentes. Publicou seus primeiros textos em antologias no início da década de 90, mas só começou a ganhar leitores a partir de 1995, despejando linhas no não-lugar conhecido como internet. Fez parte do já lendário e-zine Cardosonline e é um dos fundadores da editora Livros do Mal, por onde publicou também O livro das cousas que acontecem (2002).
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" (...) Às vezes confundo Rimbaud com Baudelaire, mas não me importo muito porque a maioria das pessoas que conheço nunca ouviu falar de nenhum deles. Estas duas garotas que estão comigo, por exemplo, não devem saber nem onde fica a França. Na Europa, a loira com cara de morena me responde. A morena com cara de índia não se move, finge que dorme na cama desarrumada. Me fala mais da França, eu peço, e ela me vem com torre Eiffel, Guerra dos Cem Anos, Joana D’Arc, Asterix, Revolução Francesa, Danton, Marat e Platini. A vida tem suas surpresas. Ah, e Sartre.
Sento na cama, as molas fazem barulho assim nhéc-nhéc e eu fico fazendo nhéc-nhéc até que de repente a índia começa a sangrar bem em cima do lençol que até agora não estava muito sujo. Estava tão branco, agora tem uma mancha vermelho escura, estou menstruada, ela diz, tô vendo. Fecho os olhos e sinto meus cabelos esvoaçarem, é bem bom esse ventilador, respiro fundo e o cheiro entre azedo e doce me invade as narinas, chego até a sentir o gosto, sangue sempre tem um quê metálico no fundo. A loira que qualquer um vê que não é fica remexendo em uma grande bolsa de couro, as sobrancelhas dançam fazendo arcos, a boca se espreme em um canto, ela tem uma expressão meio boba mas gosto dela, então surge um sorriso, acho que ela encontrou o que estava procurando.
Me atira a caixinha de OB, não consigo alcançar, sabe, eu não acredito muito nas leis da Física, pego a caixinha do chão, tamanho médio, eu brinco ihh vai precisar de supergrande e a índia me dá um tapa nas costas, não dói mas ela pede desculpas. Rindo eu peço para colocar o OB nela, a loira falsa tranca os dentes como se estivesse sentindo alguma dor e balança a cabeça, a índia me olha e olha pro sangue e me olha e diz não, você não sabe fazer isso. Sei sim, eu digo, e ela arranca o OB da minha mão e diz vira pra lá. Fico olhando: sempre fui muito curioso.
— Você é mesmo virgem?
Claro, ela responde. Ah. Só pra confirmar. (...)"
"Um dos bons momentos de Pellizzari é Missal para rastejantes, em que consegue, numa
narrativa em primeira pessoa, quase um fluxo de pensamento, desenhar o ponto de virada em que
alguém supera alguma situação atormentante e segue em frente na vida. Mais uma vez, apoiado no
visco dos insetos, que com suas múltiplas patas servem bem de metáfora para o modo como uma
situação pode açoitar um personagem. A culpa está no açucareiro como mil formigas, as saudades
de alguém de pouco mérito está na gaveta, como centenas de baratas.
O estranhamento surge mais uma vez em contos como Gravidade. Coisas
vão caindo em frente à janela de uma dona de casa comum. Primeiro gatos, depois vacas e
depois velhas com sombrinhas. Há algo de literatura fantástica, mas não. Coisas estranhas
acontecem, mas é isso mesmo: isso acontece. No final, voltamos à vida normal. Mesmo com a pilha
de velhas espatifadas crescendo lá embaixo, voltamos a cozinhar. Isso acontece. Alguém assistiu
à Magnólia, de Paul Thomas Anderson? O mesmo pode ser dito do conto História de amor nº 17. Nele
ninguém diz que, no universo particular do conto, seja errado churrasquear bebês na história. O
tema do conto não é um psicopata, ou outra balela que algum politicamente correto possa pensar,
mas é sim sobre um carinho não correspondido a tão incomum gourmet. O tema aparente, na verdade,
é uma casca dura, pontuda e esquisita para uma polpa mais delicada." (Alessandro Martins, Rascunho)
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"Próximos, mas separados por um abismo. Assim estão a maioria dos personagens nos contos de Ovelhas que voam se perdem no céu, de Daniel Pellizzari. Seja um hamster abandonado pelo dono, uma menina no jardim de infância ou um bêbado num bar, não importa. A solidão passeia por quase todas as histórias do livro. Por nenhuma delas, entretanto, andam as lamentações ou os sentimentalismos baratos que poderiam tornar a obra um clichê. Ao contrário, a beleza dos textos está em oferecer como companhia à solidão um toque de ironia, um toque de deboche, um toque de esperança." (Barbara Nickel, Interface)
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"Nos 19 contos de Ovelhas que voam se perdem no céu Daniel Pellizzari mostra sua voracidade literária: "Tango sobremesa" é uma mórbida farsa rodriguiana, "Um hamster" brinca com o ponto de vista narrador, "História de amor número 17" exercita o grotesco, "Gravidade" evoca Cortázar em seu fantástico estropiado. Esta diversidade de enfoques e formas impede uma unidade de estilo na mesma medida em que faz pensar sobre uma profusão de referências cultas que aqui já não é a ironia pós-moderna. A melhor imagem para definir esta cabeça não é a colagem, mas o mecanismo de busca, a possibilidade de eleger suas afinidades livremente numa rede de possibilidades infinitas." (Paulo Roberto Pires, Revista Época)
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"Um hamster", de Pellizzari, é um dos melhores exemplos de que o inusitado pode ser uma boa alternativa para dar um novo fôlego a histórias que falam de velhas inquietações humanas. Neste texto, o leitor se depara com a angústia do abandono em uma história protagonizada por um roedor. Sem resposta no final, ao leitor só resta continuar a refletir. Mas talvez o melhor momento do livro seja mesmo o conto "Felicidade talvez", um exercício quase cinematográfico, no qual três cenas diferentes apontam para um horizonte distante, mas possível. É nesse momento que o leitor percebe que há todo um universo particular a ser descortinado neste Ovelhas..., mais amplo do que aquele que fora apenas insinuado até agora. O inesperado, expediente mais que comum na prosa, é usado aqui associado ao texto curto, por vezes curtíssimo, exercendo sobre o leitor um impacto maior, como em "Gravidade". Nele, a rotina diária é invadida pelo surreal. Um universo quase kafkiano, mas que não tem a capacidade de abalar a vida comum dos personagens, mostrando que talvez pouca coisa hoje em dia possa ainda ser chocante aos olhos humanos. Uma surpresa em potencial se esconde em cada conto. Tudo parece casual, mas é cuidadoso e, ao mesmo tempo, ágil. Um universo que fica suspenso, como que a esperar que o leitor reinterprete as histórias e desvende seus significados particulares. É o caso do melancólico "Jardim de infância", no qual uma criança passa por uma experiência de desilusão (amadurecimento?), a primeira de muitas, como o autor deixa entrever para além da fantasia de abelha que ela veste: um ego ferido. Neste conto, Pellizzari coloca, de maneira concreta, elementos que mais tarde talvez farão parte da vida de sua personagem, mas de forma abstrata. "Ponto de fuga", que fecha o volume, é quase uma síntese de tudo o que Pellizzari mostra nesta sua estréia. Curtíssimo, carrega consigo alguma surpresa e estranhamento, levando o leitor ao encontro do inusitado." (Renata de Albuquerque, Revista Cult)
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"O que mais surpreende no livro de estréia de Daniel Pellizzari é realmente a facilidade de se encontrar estranhamento e anti-convencionalismo em cada texto. Percorrendo um tortuoso mundo de estupefação ante as bizarrices diárias a que estamos todos expostos, Pellizzari não apresenta necessariamente moral em suas histórias: as coisas acontecem em seu estranhamento porque simplesmente têm de acontecer. Daí uma estranha relação entre um proprietário de apartamento e suas aranhas, o que acaba contribuindo para que bebês comprados em sinais de trânsito, e assados para um jantar romântico, não sejam assim a coisa mais inusitada do mundo. O bom neste livro é isso: a tamanha naturalidade na narração de estranhezas, em que passamos a crer; não nos achamos, portanto, nem "superiores" nem "indiferentes". "O vôo das Ovelhas" é um exemplo nesse sentido: talvez a normalidade esteja naquele que busca, através da loucura, alguma réstia de vida social. E os loucos talvez sejam aqueles espalhados em cada esquina, a vender vales-transportes e relógios do Paraguai." (Alessandro Garcia, Digestivo Cultural)
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