(putaria.)
#5 ; edição cajadada

 

noite I

fernando almeida

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Deus que acabe com isto! Abra as enclusas
E basta das comédias na minh`alma!
Fernando Pessoa

Peraeh, deixe-me fazer algo em prol da minha estética! Não me venha vociferando meias verdades universitárias, argumentos de leitores orelhas de livros, eu estou aqui em paz construindo meu nirvana e caindo em contradições, deixe-me dinamitar o homem assim como fez Freud ou perder perder perder-me em meus gritos sempre tão abafados arf arf arf preciso respirar um pouco, abre a janela por favor ? Eu odeio andar de taxi, parece que é sempre meio dia escaldante, arf arf arf! Vou descer ali na Paulista com a Augusta. Era a hora certa para sair daquele espaço cheirando a livro mofado, eu sempre sendo tolerante, peraí mãe, já estou acabando, digito só mais duas linhas do trabalho e vou dormir - eu sempre fingindo estudar pra escrever essas merdas, dormindo pouco e me isolando de todos, vai ser escritor, filho da puta, vai! Você ai leitor desatento e melhor escrevedor que eu sabe bem do que estou falando, você sabe. Trânsito maldito do rush, ao menos está chovendo, os vidros estão embaçados e pode-se ver as gotas abafadas escorrendo, cortando as palavras que meus dedos negam-se a escrever no vidro nebuloso, pura inacção, está ouvindo Pessoa?, fico respirando rápido como se fosse por vontade própria para embaçar mais o vidro, puf puf puf, arf, até ficar tonto por tentar assumir o controle da situação - é tudo imposição meu filho, não adianta lutar contra, diria Sartre balançando a cabeça, então vá existindo enquanto isso, não para pra pensar muito não. - Mas é impossível. A cidade encharcada debruça-se sobre o parapeito da nossa tristeza, deita a cabeça sobre os braços e sussurra com lassitude, - faça-me um poema esta noite, compartilhe junto a mim os seus momentos de ternura escondidos no meio de toda essa bagunça de livros pessoas nomes céus nublados e desalentos que é a sua vida, escreva-me uma tragédia com morte no final, de preferência a morte do narrador, assim fica triste e patético, como você. Fascinante (sem querer soar Dr. Spock). - Peraí mãe, já vou apagar a luz! não estou incomodando o meu irmão, ele já pegou no sono faz tempo. . . em verdade ele vive dormindo, só você ainda não percebeu. O motorista do taxi puxa assunto com o mesmo desconforto de um comentário qualquer feito no elevador, comentários claustrofóbicos enfim. Eh meu rapaz, deve ter acontecido algum acidente ali na frente, os homi já chegaram com as ambulância e aquela zoada toda, parece que vai demorar, talvez a corrida fique muito cara se você for esperar, e como você já me disse que tá com pouco dinheiro, por que não desce aqui mesmo e pega o metrô ali na frente? a chuva já diminuiu um bocadinho. . . - Paguei o taxista e saí do carro meio atordoado, meio fora do contexto, mas as finas gotas de chuva me trouxeram de volta... de volta a o que? (ahn. . . , vamos deixar "de volta ao real", por enquanto.) As finas gotas de chuva me trouxeram de volta ao real. Senti meus sapatos se encharcarem após alguns passos e poças e enxurradas, não sou dessas pessoas que carregam desconfortáveis guarda-chuvas na bolsa, demoro meia hora pra escolher se levo Borges ou Lorca a tiracolo, mas nunca guarda-chuva. É tudo questão de saber trazer consigo um desconforto prazeroso ou não. Vou me abrigando no salto entre uma marquise e outra, pulando poças e desviando dos pedestres apressados, parece que estou jogando freeway, mas eu queria mesmo era um solo de violoncelo, seria cinematográfico. . . (delírios) (imagine agora um solo de violoncelo na chuva), eu deveria estar de sobretudo feito com pele de arminho e um cachecol, nada de guarda-chuva, caminharia encostado na calçada, quase esbarrando nas construções, olhar fixo no chão, pisando em todas as poças, etc. . . me imagino assim mesmo quando não está chovendo. . ms agora chove e estou de jeans e camiseta do Radiohead. . . é a pós-modernidade declinante, mais um ego sem identidade ao sul do Equador. Já estou me aproximando da estação do metrô, cuja marquise é a mais lotada, pessoas engarrafadas evitando a chuva indesejável, dá licença, dá licença? cuidado com meu pé!, vou me espremendo até chegar ao subterrâneo para esperar a grande minhoca transportadora de minhocas fruto de um capitalismo que só pode ser idéia de quem tinha minhocas na cabeça, esse transporte funicular de minhocas (ok, isso não está engraçado, vou me esforçar). A lei de Murphy deve ter sido concebida numa estação de metrô: um grande abismo separando-nos do outro lado onde o metrô sempre passa primeiro (sutil e engraçado). As portas se abrem. Eu entro, mas não lembro se é via norte ou sul. . . - Agora é sério mãe, só falta a conclusão apesar da argumentação estar um tanto incoerente, mas geralmente andamos tão distraídos que ninguém vai notar este detalhe, e por outro lado eu não quero nada disso de coerência, no final da minhas histórias o mocinho quando está vivo sempre morre, então estamos empatados. Não obstante, creio já poder trocar o real pelo imaginário, então eu rasgo até certo ponto, até o momento em que pago a viagem ao taxista e saio do veículo: As finas gotas de chuva me trouxeram de volta ao imaginário, mas não havia chuva alguma, engarrafamento algum, táxi algum, somente a idéia vaga de uma calçada melancólica que leva até a casa de quem sempre pede para descer dois quarteirões antes, uma pequena caminhada antes de chegar em casa, para refletir um pouco sobre estética do absurdo ou sobre como estamos envelhecendo mais inertes a cada dia e não fazemos nada a respeito. Pego meu cachecol e meu sobretudo feito com pele de arminho e vou caminhando pela calçada de cabeça baixa. . . É um universo barato tecido em literatura barata andando a 14.400 bps.
Pronto mãe já desliguei o computador boa noite.

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(putaria.)