(putaria.) |
#5
; edição cajadada
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uma breve história |
indigo
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Disse Vladimir Nabokov, na mais cruel história de amor já escrita, que
só mesmo um louco ou um gênio para reconhecer uma Lolita num grupo de
meninas brincando. Fui igualmente louca, embora não tão genial, na minha
descoberta. Passados os anos, vejo que beiraria a perversão, se não
fosse a inocência que me conduziu. O amor mais verdadeiro que existe é
este que se sente por um estranho. Soube que a ele pertencia mesmo antes
de saber seu nome. Sempre inatingível, embora cordial. Não sei o que
esperava ele de mim, talvez as palavras, que nunca disse. Tantas frases
prontas, diálogos ensaiados, todos censurados na sua presença. E dos
versos que para ele compus, cartas que lhe escrevi, nenhuma palavra
conheceu. Eu apenas esperava, como ele. Eu na fila, ele atrás do balcão.
E hoje só me resta escrever, esta triste e breve história de amor que
não vivi, com o açougueiro do Carrefour.
Como disse, eu aguardava, pacientemente na fila. Aguardava minha vez de
ser atendida por ele. Tomava meu lugar, sempre com um livro na mão.
Fingia ler. Ele me via, eu desviava o olhar, até que ele retomasse sua
rotina, então fechava o livro e estudava seus movimentos. Conhecia suas
manias, seu ritmo. Executava seu ofício com esmero e agilidade. Um facão
e um paninho, agressivo e delicado. Com movimentos redondos e perfeitos
esfregava o balcão, enquanto anotava mentalmente o pedido. De olhos
baixos, escutava, como um servo fiel e discreto. Então dobrava o pano ao
meio uma vez, levantava os olhos, dobrava uma segunda vez. Homem
prestativo, ponderava a escolha. Estando de acordo, executava. Caso
contrário, orientava com toda sua sabedoria gastronômica, suas clientes.
Conhecia a carne como se fosse ele mesmo seu criador divino. Os
mistérios da anatomia humana, ou no caso, bovina, ele decifrava com um
bater de olhos. E como a manuseava!
Para isso dava as costas ao seu público, por pudor. Deitava a peça sobre
o balcão frio, acomodando-a numa posição repousante. Com a ponta dos
dedos lhe apertava, pressionando em certos pontos com determinação.
Então a esticava, desabrochando, alongando, relaxando a carne. Esta,
como não poderia deixar de ser, cedia. Nesse ponto ele apoiava as mãos
na beira do balcão, para observá-la apenas. Olhava intensamente, de uma
ponta a outra, sem pressa, um olhar prazeroso, de satisfação. Ela estava
no ponto.
Estirada, a peça vermelha aceitava, docilmente, que ele lhe cortasse.
Era no momento do corte, precisamente quando a carne se desfazia ao
encontro da lâmina, que seu lábio inferior tremia, muito rapidamente, um
tremor quase imperceptível, mas que ele não controlava. E ele cortava; o
primeiro pedaço, com um movimento contínuo e lento. Estando a lâmina
prestes a encontrar o balcão, reprimia sua faca por um átimo de segundo,
e então, com mais força, chegava ao fim. Cortada a primeira fatia.
Afastava-a para o lado, tomando a peça novamente em suas mãos, como no
início. A massageava novamente, desta vez com mais vigor. No seu rosto
nem mais um indício. Agora o olhar sem expressão, possivelmente seu
pensamento nem estivesse mais ali. Cortava mecanicamente fatia após
fatia, acumulando-as numa pilha, embrulhando-as e jogando o pacote na
balança. Era nessas horas que me flagrava observando-o, com o livro
abandonado. Chegava a sorrir e levantar uma sobrancelha sugestiva. Mas
sobrancelhas não se levanta assim a troco de nada. Perguntava ele, com
aquele gesto descarado, se o aprovava. Retomava a leitura e empurrava o
carrinho, fazendo a fila andar.
Como era brutal despertar daquele doce sonho e ouvir alguma consumidoras
insensível chiar do preço, da demora. Reclamavam mais por hábito do que
revolta, incapazes de perceber aquela demonstração explícita de
masculinidade.
Voltava a cada semana, para mais. A cada fila descobrindo suas
sutilezas, até entender sua rotina por completo, ao ponto de adivinhar o
movimento seguinte. Suas mãos já me eram conhecidas, as sentia me
puxando, batendo, esticando, até me deixar no ponto. Eu estava no ponto.
“O que vai ser hoje, freguesa?”
Precisava lhe dizer então, aproveitar que a fila se desfizera, sobrando
apenas eu. Uma fila só minha. Sabia exatamente o que dizer, estava
ensaiado, pronto. Bastava apenas falar. Antes de mais nada ele era um
básico. Usaria palavras básicas e isso bastaria. O resto viria
naturalmente, aquele delicioso resto, que era tudo.
“Maminha. Bem macia.”
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(putaria.)