(putaria.) |
#5
; edição cajadada
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missal para rastejantes |
daniel pellizzari
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o olhar dos bichos é uma pergunta morta.
formigas. quando ele foi embora eu olhei pro chão e juro que
nunca na vida tinha enxergado tantas formigas. eu queria
acabar ali mesmo. mas agora nada mais me impede. não me
importo. tomar o caminho de casa como todos os dias, o perto
chegando aos poucos. segurança; a ausência sempre me foi
ponto de partida. o fato de nunca estar ali quando mais
precisava lembrava da promessa de que era eu e que um dia
estaria. vou desviando os passos. não vou matar formigas.
são tantas. no quintal da minha casa, ainda lembro, muitos
formigueiros. eu ficava sozinha a maior parte do tempo, os
pais no trabalho. por vezes chegavam falando da supervisão.
eu tremia de imaginar o Grande Olho em cima, algo ainda
maior que meus pais. você, Deus. mas não pensava nisso o
tempo inteiro, porque me entretia com os formigueiros. eu e
hans. o melhor amigo imaginário é aquele que você sabe que
não existe. sem traições. tudo muito limpo. nada de
joguinhos. eu e hans destruindo os formigueiros, ele ruivo e
rindo alto. as sardas. eu achava lindo. inventei o mais
bonito que podia. me amolecia as pernas finas, nós dois
brancos, suando, se avermelhando de esforço. ele com os
gravetos, remexendo. eu olhava: supervisão. as formigas
corriam para todos os cantos, ele o desalmado gargalhava.
elas não sabiam para onde ir. nós de galochas. nada de ser
picado pelas espertinhas. e corriam. iam tontas para todos
os lados. um dia ele baixou as calças e mijou no
formigueiro; um enorme. bem mais rápido que com os gravetos.
cavando cada vez mais fundo, o mijo quente desfazendo tudo
das formigas, no final os ovinhos brancos, elas carregando,
nós dois rindo. ele não parava nunca de mijar. fazia espuma
no formigueiro. fiquei olhando os caminhos das formigas, o
que ainda se podia enxergar dos túneis. tanto trabalho. hans
pau de fora, mijando. eu pernas moles, em dúvida. no outro
dia tínhamos destruído os caminhos dos cupins. aquele
cheiro. nunca mais algo assim. hans olha bem na minha cara e
dá mais uma risada. torcendo o corpo começa a me mijar toda.
não saio do lugar. o calor escorrendo por meus joelhos até
os pés. na minha barriga, minha virilha, o riso de hans.
fiquei até o fim. de noite me deu febre. febre de visões. as
formigas andando pelo quarto enormes com os ovinhos nas
costas. a sombra das antenas na parede ao lado da cama.
fiquei batendo a cabeça até sumir. falei com Deus. nunca
mais matar formigas. nunca mais. quero que me pisem, Deus.
que me mijem toda. que me afoguem em mijo de cheiro forte.
primeiro mijo da manhã, bom de curar frieira. nunca mais
fazer isso com formigas, Deus. nunca mais ver hans. dobro a
mesma esquina do jeito de sempre. dou falta da árvore. chego
perto. ali só o toco. era enorme. agora só um toco. cada vez
mais formigas, por todos os lados. não deixaram nem raízes.
tudo cortado. cupins despedaçando formigas. façam isso não,
olha Deus. cupim cabeçudo. o resto da árvore bem perto do
muro. o claudinho me encostou no muro. nem fiz nada. tinha
ralado o joelho tentando correr, mas nem era dele. fica
quieta. me apertou assim eu de frente nariz pro muro ele me
apertando toda com o corpo. ouvi risada. hans em algum
lugar. verão. roupa curta. claudinho se esfregando de pau
duro na minha bunda. fica quieta. hora de estar em casa. não
tenho medo. eu suando. olho pras formigas subindo o muro.
claudinho não pára. fica bufando e não pára de se esfregar
em mim, uma mão de cada lado. eu nem ia fugir. colocou a
boca bem no meu ouvido. agora eu te comi. saí correndo,
agora sim. não precisava ter falado. palavra muda tudo.
direto pro quarto, não vai tomar banho minha filha, nem falo
nada. não precisava ter dito. coisa falada é coisa
acontecida. eu nem sabia mais. hoje sei, mas hoje não
importa. sou adulta. é. nem sei se andei crescendo. podem
ter me cortado. eu um toco achando que é uma árvore. cheio
de formigas e cupins cabeçudos abrindo caminho por tudo do
dentro. pode ser a maior das árvores por fora, mas é um
sopro e acabou. cheia de caminho de cupim. só aparência. a
casa ainda está ali. eu fiz as escolhas certas, Deus. na
vida a gente tem que poder perceber o óbvio. a coisa que
grita é sempre a certa. segui por esse caminho. nem um
cadáver de formiga a mais. agora eu merecia. fiquei
esperando como ele disse. e nem me mexi. fiquei esperando
ele voltar. sou eu ele falou. não podia nem discutir. porque
eu sabia. eu sei. sou eu mesmo. cumpri toda a minha parte. a
escolha certa. abro a porta e a luz da rua entra primeiro.
nem pede. hoje nem é dia de abrir cortina, xô xô xô. fecho a
porta e a luz vai embora. nem se despede. será que ele sabia
o tempo inteiro que no fim ia dizer isso eu penso. ninguém
faz coisa assim. nem hans. ninguém. ele deve ter mudado de
idéia. só pode ser. é justo. sento na cadeira de balanço. o
mofo aqui nunca me deixa. todo mundo tem direito de pensar
diferente de uma hora para a outra. as formigas vão para
todos os cantos. não existe coisa que não tenha frestas. mas
se era eu o tempo inteiro, queria saber porque nunca fui e
agora nem sou mais. a gente sempre quer saber tudo. sei que
a vida não tem explicações. qualquer tentativa é desculpa.
penso até em tomar café. o açúcar preto de formigas. não
posso matar. nem pensar em café amargo. disso chega. abro a
gaveta. combinei nada com Deus sobre baratas. também não vou
matar. pego a maior. as patas mexem rápido. abre as asas.
vvvvvt. cascuda. largo com cuidado no meio das formigas. ela
some. abro a outra gaveta. cor bonita a das baratas. uma em
cima da outra. felizes. jogo um pedaço de pão bem no meio.
mastigo o outro, bem seco. barata é um bicho coitado. sempre
com medo. se escondendo pelos cantos escuros. a qualquer
perigo zzzzzt passa à toda. barata não deve dormir. pobres.
corto um pedaço de abóbora e coloco também. ai meu dedo. é
grande o talho. quando a gente é pequeno pode ser um
cortezinho de nada que faz drama. mas só se enxerga. lembro
quando topei o dedão. passei o resto do dia correndo por
tudo. aí a denise me avisou. eu sem unha. saltaram as veias
de tanto que chorei. só doeu quando vi. a gente não sofre se
não enxerga. meu sangue do dedo pingou pela pia. medo de
matar formiga. acerto uma só, grandona. no meio das baratas.
umas lacraias passam ondeando. tão delicadas. a formiga sai.
viva. pego de novo a faca. um pouco de sangue na lâmina.
pode ter mais. eu desexistir. dois talhos no pulsos. dos
grandes. de chorar. Deus eu estou de saco cheio Deus. fiquei
esperando todo esse tempo e ele foi embora Deus. ele sempre
disse que eu era a Mulher mas que ainda não era hora Deus.
quando é que as coisas vão fazer sentido Deus. todo tipo de
bicho pela cozinha. umas mariposas no meu cabelo. enrolam
nos cachos. encosto a faca no pulso. tenho medo. acho que
sempre fui meio idiota Deus. com que intenção a gente foi
cair aqui assim hein Deus. o que leva a gente a acreditar em
coisas Deus me diz. enfio a mão na gaveta cheia das baratas
formigas lacraias lesmas cupins besouros gafanhotos aranhas
centopéias minhocas vermes minha vida Deus. o ruído da faca
vem em três agoras: depois pára, deitada seca no chão. enfio
a outra mão, fecho uma concha. puxo o ar bem fundo boca
aberta sai um barulho bem no fundo meio chiado. faço um bico
e sopro a vida pra fora. se é assim é assim que vai ser.
enfio na boca os bichos todos. mastigo bem. crocante. chupo
os sucos até o final. um travo na boca. engulo a pasta. com
a língua tiro os restos de pata e casca dos meus dentes.
ninguém vai me enganar agora, deus. não consigo mais nem
lembrar a cara dele que eu esperei, deus. a ausência que
quando chegou me levou para longe. nunca foi meu, deus.
nunca fui nada. mas minha decisão já foi tomada. não vou
fazer o que vocês querem, deus. ninguém vai mijar em mim.
ninguém vai dizer que me comeu. não vou ser toco. que se
fodam. não vou. chuto a faca para longe. bate na parede,
treme e fica de novo imóvel. coisas estão sempre mortas,
deus. a gente faz o que quer com elas e tudo bem. as coisas
estão aí para isso mesmo. mas não eu. eu sou outra coisa,
deus. acho que descobri o que eu sou. para que eu sirvo. o
que tenho que fazer. se é assim que tem que ser então é fim
de trato. enfio as mãos mais uma vez e mastigo o resto dos
bichos. não vejo mais uma formiga sequer. hans quieto pra
sempre. eu de boca cheia. essa morte nem tem gosto. mas é a
vida que você nos oferece, deus. é o que você me deixou, meu
amor. muito obrigado. caminho até a sala e abro uma das
janelas. agora que o fim chegou eu posso começar a cuidar de
viver.
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(putaria.)