(putaria.) |
#5
; edição cajadada
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irvine welsh e a literatura escocesa contemporânea: |
eduardo marks de marques
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Imagine que você está caminhando pelas
ruas de qualquer cidade da Escócia. Imagine que você não
conhece nada nem ninguém dali mas que você está realmente
interessado em saber alguns aspectos da sua cultura. Então,
você decide abordar um dos transeuntes e, no seu melhor inglês,
pergunta: "Ei, será que você poderia me resumir, em
algumas poucas palavras, o que significa ser inglês?"
Dependendo do grau de pacifismo do transeunte, você pode receber
alguns incompreensíveis insultos ou alguns compreensíveis socos
como resposta à sua pergunta. E, mesmo que ao invés de
"inglês" você tivesse usado o termo
"britânico" na pergunta, dificilmente a reação seria
diferente. Para nós brasileiros, bem como para
qualquer pessoa que esteja acostumada a usar os termos Inglaterra
e/ou Reino Unido para definir a totalidade das Ilhas Britânicas
(British Isles) e todos os países que compõem o reino, é
bastante comum ouvirmos pessoas que consideram a Escócia, a
Irlanda e o País de Gales como meros "pedaços" da
Inglaterra. Há diversas razões para tal crença, entre as quais
a mais importante é a posição história da Inglaterra como
centro hegemônico do Reino Unido. Mas, o importante é que nem
os escoceses, nem os irlandeses e nem os galeses se consideram
(como realmente não o são) ingleses. A idéia do Reino Unido
como um todo, em termos culturais principalmente, é tão falsa
quanto a crença da unidade lingüística e cultural do Brasil. Se cada um dos países tem sua própria
cultura e língua, a reação do escocês imaginário descrita
anteriormente é extremamente coerente. Especialmente na
Escócia, existe uma luta intensa pela sua própria identidade,
melhor dizendo, pela sua independência cultural. Os padrões
ingleses não servem para definir nada que não seja inglês. Tal
afirmação pode soar óbvia para nós mas, por séculos, a
Escócia foi tratada como uma mera extensão da Inglaterra, o que
gerou um sentimento de incompatibilidade que, somente no final
dos anos 80 gerou o movimento de independência cultural dos
escoceses. A primeira grande demonstração artística
deste sentimento de revolta cultural foi o filme
"Braveheart", do australiano Mel Gibson, que mostra o
lendário herói da independência política escocesa, William
Wallace. E foi graças ao sucesso mundial do filme que vários
outros artistas escoceses puderam se projetar no cenário
mundial, levando os conceitos de cultura e literatura inglesas a
serem reconsiderados. É bastante comum no meio acadêmico
chamarmos todas as literaturas produzidas nas Ilhas Britânicas
de Literatura Inglesa. E é justamente contra este conceito que
um grupo de escritores escoceses se uniu no começo dos anos 90.
Além de dividirem o sentimento de incompatibilidade com a
literatura chamada inglesa, todos os autores deste movimento,
denominado "new scottish writing" estão na faixa dos
40 anos, são todos urbanos, já tiveram ou têm envolvimento com
drogas e incorporaram à sua narrativa a linguagem coloquial
escocesa, rompendo com o chamado Standard English. Entre esses
escritores, encontramos Candia McWilliam, Edwin Morgan, Norman
MacCaig, Kate Clanchy, Anne Donnovan, Alan Warner (cujo último
livro, "The Sopranos" foi considerada a grande surpresa
do último verão britânico e conta a história de um dia na
vida de um grupo de colegiais em uma cidade do interior da
Escócia, onde elas se embebedam, caçam homens e embarcam em uma
viagem para Edimburgo) e o chamado Papa desta nova geração de
escritores, Irvine Welsh. Welsh ganhou este título graças ao seu
primeiro romance, "Trainspotting",
publicado em 1993 e que ganhou notoriedade mundial após ter sido
transformado em filme dois anos depois. O livro é um conjunto de
histórias aparentemente desconexas sobre um grupo de amigos
viciados em heroína e suas desventuras em uma Edimburgo tão
suja quanto os próprios personagens. Com exceção do último
capítulo, narrado em terceira pessoa e em Standard English, cada
capítulo do livro é contado por um dos componentes do grupo que
mostra a sua relação com a heroína e com a sociedade em geral.
As descrições do uso de heroína e das sensações dos
personagens quando intoxicados são tão poéticas quanto
assustadoras: This
internal sea. The problem
is that this beautiful
ocean carries with it
loads ay poisonous
flotsam and jetsam...
that poison is diluted by
the sea, but once the
ocean rolls out, it
leaves the shite behind,
inside ma body. It takes
as well as it gives, it
washes away ma
endorphine, ma pain
resistance centres; they
take a long time tae come
back.
The
wallpaper is horrific in
this shite-pit ay a room.
It terrorises me. Some
coffin-dodger must have
put it up years ago...
appropriate because
thats what ah am, a
coffin-dodger, and ma
reflexes are not getting
any better... but
its all here, all
within ma sweaty grasp.
Syringe, needle, spoon,
candle, lighter, packet
ay powder. Its all
okay, its all
beautiful; but ah fear
that this internal sea is
gaunnae subside soon,
leaving this poisonous
shite washed up, stranded
up in ma body.
Ah start tae
cook up another shot. As
ah shakily haud the spoon
ower the candle, waitin
for the junk tae
dissolve, ah think; more
short-term sea, more
long-term poison. This
thought though, is
naewhere near sufficient
tae stop us fae daein
what ah huv tae
dae." (WELSH,
Irvine. "Trainspotting".
New York: Norton, 1996.
p.14) Ao contrário do filme de Mel Gibson, Welsh
não apresenta heróis em sua narrativa mas sim anti-heróis.
Seus personagens, bem como os personagens dos demais autores
citados anteriormente, são pessoas comuns, em sua maioria
marginalizados pela chamada sociedade normal. Viciados em drogas,
cafetões, prostitutas, travestis, transexuais, psicopatas; todos
têm voz e vez na narrativa de Welsh. Pessoas comuns também são
retratadas, em situações que mostram o lado mais bizarro e
cruel que cada um de nós tem mas não admite ter. No conto
"Disnae Matter", presente na antologia "The
Acid House" (1994), o protagonista/narrador conta,
em dialeto escocês, ininteligível para muitos dos falantes de
Inglês, uma viagem que fez à Disneyworld com a família. Em um
dos passeios, um funcionário do parque com uma fantasia de urso
pula na frente deles e começa a balançar os braços, numa
tentativa de brincar com a filha do narrador, que começa a
chorar, assustada. O pai, então, espanca o funcionário até
quase matá-lo. E tal fato é narrado com a naturalidade de uma
conversa de bar. Muitos dos personagens parecem não
carregar consigo moral alguma. O protagonista de seu último
romance, "Filth" (1998), é um policial
corrupto, viciado em drogas, sexo e violência de todos os tipos.
Em uma das passagens, ele espanca um traficante e obriga uma
garota que comprava drogas a praticar sexo oral nele; em outra
passagem, ele passa trotes telefônicos obscenos para a esposa de
um companheiro e se oferece para investigar o caso. Isoladamente,
os exemplos realmente parecem mostrar um ser completamente amoral
mas, para Welsh, não existe moral em um contexto social, mas sim
pessoal. A moral do ser humano só pode ser considerada dentro do
contexto global dos objetivos que o mesmo ser humano pretende
alcançar. Ou seja, se considerarmos que a personagem em questão
busca somente o prazer, mesmo que à custa de outros, sua moral
é perfeitamente coerente com seus atos. O mesmo pode ser dito
dos viciados em heroína de "Trainspotting". Se os personagens são marginais envolvidos
em situações que os leva à margem do bizarro, o ambiente
também não está livre desta qualificação. Todos os contos
são urbanos, sendo Edimburgo a cidade escolhida para a maioria
deles. A capital escocesa é tratada como berço de grandes
guetos propícios para a propagação de tipos como os
personagens de Welsh, ou seja, a Edimburgo das narrativas é como
qualquer grande cidade européia e, por que não dizer, mundial.
E é justamente a imagem de Escócia passada para o mundo que
preocupa muitos dos acadêmicos puristas que pedem que a nova
identidade escocesa seja representada por autores mais
"convencionais". O contra-argumento é o de que os
escritores "convencionais" já estão comprometidos com
os padrões ingleses, com o status quo. Pode-se inclusive dizer que tanto Irvine
Welsh quanto os demais autores pertencentes à nova geração da
literatura escocesa são, em sua essência, uma espécie de
síntese do pós-modernismo. O rompimento com os padrões
temáticos, lingüísticos e estruturais presentes em suas obras
representa justamente a poética pós-moderna. Não é difícil
de conceber que eles escrevam desta maneira visto que a
contemporaneidade apresenta uma multiplicidade de fatores jamais
experimentados em qualquer outro período literário. Drogas,
música eletrônica, Internet; tudo é experimentado e
transformado em literatura. Também é interessante citar que, dentro
dessa nova corrente literária ainda não existem poetas. A
produção é totalmente prosaica. Quando perguntado sobre a
falta de poesia dentro da geração, os autores são unânimes em
dizer que a poesia ainda não está pronta para tratar dos
assuntos que a prosa deles trata; que ainda existe um lirismo
imanente na lírica que deve ser destruído no caso de poetas
quererem adaptar a filosofia do "new scottish writing"
à poesia. Se denominarmos identidade como sendo um
conjunto de valores socioculturais que diferenciam um povo de
outro, o que vemos nesta literatura é realmente uma tentativa de
esboçar uma identidade escocesa própria. A partir de agora, a
identidade escocesa não se evidencia mais em contraste com a
identidade inglesa mas começa a existir enquanto fator concreto.
Talvez não seja a imagem de "eurotrash" que prevaleça
em um futuro talvez não muito distante mas, por enquanto, temos
que reconhecer que os autores na "new scottish writing"
merecem destaque por terem a coragem de romperem com o
"mainstream" literário corrente, retratando gente real
como a gente, em situações que podem até não ser tão reais
mas que revelam o que cada um tem de mais selvagem. Como a
última linha do conto "Eurotrash" evidencia, "not
Eurotrash, just people trying to get by." |
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(putaria.)