(putaria.)
#5 ; edição cajadada

 

a terceira esquina

hermano freitas

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Todo casal obrigatoriamente tem que ter um corno, quando não é a mulher é o homem. Esta é uma verdade quase tão antiga quanto os casamentos. Amor sempre foi uma desculpa para trepar, coisa de poetas e adolescentes. Talvez José Felipe fosse algum dos dois, ainda que uma neve anciã já lhe branqueasse levemente o telhado - nem sequer compusera uma quadra em toda sua vida. Mesmo assim, foi sentindo-se o mais apaixonado dos homens que entrou no escritório do detetive Macedo, que acreditava apressar a passagem do tempo fumando seu charuto matutino. Bateu à porta sem fazer o menor ruído, mas sendo imediatamente notado. Não estava mais tão confiante como em princípio.

Alguma fumaça já havia saído pela porta precavidamente esquecida aberta por Felipe, quando Macedo resolveu tomar a palavra:

- Corno? - charuto entredentes.

- Como?

- Você é corno?

- Não estou entendendo, meu senhor.

- Tua mulher te chifrou, não foi?

- C... Como você sabe? - José Felipe, uma vara verde.

- Segredos de profissão - detetive Macedo sorridente, pensando - este aí tem uma cara de corno... corno manso, não resta dúvida.

Como José Felipe não se decidisse, resolveu perguntar os pormenores do caso: como foi, como não foi, quais as suspeitas, endereço, valor que poderia pagar pelos honorários - mera formalidade, aceitaria qualquer trabalho a qualquer preço. Barganhou-se um pouco e logo estavam conversados.

Começara a desconfiar de sua esposa, Cláudia, quando esta passou a arranjar atividades extraconjugais com muita freqüencia - antes quase nada ligava para isso.

- Antes quando, "Zé"?

- Bem, nos primeiros seis meses de casamento - tinham quatro anos.

- É preciso mesmo muita vocação para ser corno... - pensa Macedo.

A coisa toda se precipitara quando ele encontrou uma cueca estranha embaixo da cama, supostamente um lenço no qual a mulher fungava todas as noites devido à rinite. Tinha um cheiro úrico, mas José Felipe não estava convencido: talvez fosse apenas uma outra cueca sua que ainda não conhecia - não desejava ser injusto de jeito nenhum.

Macedo já não se segurava, gargalhando a cada novo dado de Felipe para pigarrear segundos depois, autorizando com falsa seriedade:

- Prossiga, prossiga.

Nas últimas semanas Cláudia passara a receber muitos telefonemas masculinos, depois das nove, a pretexto de assuntos profissionais que nunca podia revelar, e que, aliás, não tinham a menor importância, segundo ela.

- Me pergunto, Dr. Macedo, que assuntos podem ser esses que ela gargalha tão alto no fone para logo sair toda arrumada sem dizer aonde vai?

Macedo e sua risada pulmonar. Estava há duas semanas no caso.

* * *

- Muito bem, vagabundo filho de uma puta, vou perguntar mais uma vez e quero ouvir a resposta certa.

Macedo não é detetive particular o tempo todo. Ali, em frente ao negro nu, exerce sua real profissão: detetive do DENARC. Todo dia é um lidar com a marginália que quase lhe extingue a força para assuntos particulares. Entretanto, adora interrogatórios.

O negro já tem as dimensões de um percevejo quando Macedo dá por encerrado o silêncio de pressão psicológica, repetindo a pergunta:

- Por quanto tu tava vendendo aquelas bucha de bosta de vaca?

O interrogado responde:

- Eu não sei, seu... eu tinha ali, tava fumando unzinho mas era consumo próprio! Aquela outra pedra deve ter sido botada ali por qualquer outro cara que tivesse fumado atrás da praça. Eu só fumo e cuido carro, só fumo!

Macedo volta-se para o colega assistente, eximindo-se de culpa:

- Eu avisei, não avisei Agnaldo?

Primeiro foi um soco no peito. Quanto era a bucha? Depois chutes nos rins, passando pelo fígado, estômago, tórax, e terminando em ambos os pulmões.

Macedo se cansa após quarenta minutos de depoimento:

- Chama o Montanha que este negro filho da puta tá querendo mais é pau de verdade. - Dirigindo-se ao negro - tu já foi preso não foi? Artigo 32, né? Tu sabe que nem começou a apanhar ainda. Primeiro é o Montanha, aí a boate e só depois um chuveirinho com choque no saco...

O suspeito, uma massa de coriza, lágrimas e sangue. Voz[e1]:

- Mas eu não fiz nada, juro que tava ali só fumando unzinho, esperando o dono do carro pra ganhar uns pilas. Não sou um qualquer, sou um trabalhador!

Cala a boca - silêncio pelo punho no estômago. Macedo é todo chistes:

- Ele tá lá, com a burra cheia de moedinhas de cinco, dez, vinte e cinco, cinqüenta, e quer dizer que não tava passando? Ah vai tomar no cu! Só fala pra dizer quantos menor tu passou fumo, negro de merda.

Dá mais três ou quatro chutes nos rins do interrogado que, nu e quieto como uma estátua, deixa apenas escapar finos gemidos de cão faminto. Passando o interrogatório a Montanha, Macedo vai tomar um café, catando na mesa algumas apreensões feitas pela manhã. Estende uma grossa linha branca.

Dirige-se ao delegado batendo a droga com uma carteira:

- Tem chegado muita coisa boa por aí?

- Nossa! Nunca tive que fumar tanta erva pra conseguir dormir.

Os dois gargalham, Macedo sorve sua linha de dez centímetros urrando de satisfação e alguma dor na mucosa do nariz.

Ainda fungando e de olhos vidrados, volta para ver se Montanha já extraíra a confissão do traficante. Montanha é a salvação do DENARC.

Positivo. Nas páginas policiais do dia seguinte estaria estampada uma foto do preso com uma jaqueta da polícia civil discretamente pendurada ao fundo da sala e o título:

DENARC prende traficante -
Meliante confessa tudo em depoimento ao escrivão
da 1a delegacia de repressão ao narcotráfico

* * *

Ânimo renovado, o detetive volta ao escritório a fim de atender seu único cliente além do Estado. Tem de dar as novas sobre o caso Cláudia. José Felipe o espera no saguão. Entram sem se cumprimentarem. O detetive inicia o relato:

Avistara o elemento, desculpe, dona Cláudia, às seis horas da véspera numa rua perto do centro, cerca de três quadras de seu trabalho. Ato contínuo, seguiu-a a pé até a Duque de Caxias, onde tomou um taxi, na cola do que a adúltera, desculpe, sua senhora, havia tomado.

Consumiram-se todos os cigarros de Macedo na perseguição, tendo engolido aproximadamente cinqüenta pratas o taxímetro voraz. Estavam num subúrbio qualquer, Maria da Graça talvez - Macedo pouco conhecia da cidade além da zona norte. Anotado o endereço, resolveu voltar mais tarde, outro dia, a fim de não dar muito na vista - poderia estragar toda a investigação. Era estranho: um randevu num lugar tão afastado. Muita preocupação para pouca merda. Resolveu voltar lá uns dois dias depois. Estava nublado, mas Macedo usava óculos ray-ban para evitar um possível reconhecimento. Entrando no local, realizou tratar-se de um terreiro, talvez umbanda, talvez magia negra. Confirmou-se a segunda hipótese ao verificar algumas sobras de bode preto atiradas junto a uma esteira. Só depois de algum tempo foi divisar uma velha que o observava, fumando um cachimbo, muito compenetrada.

Confundia-se com as imagens de santos.

- Olá, minha senhora. Meu nome é Agenor - mentiu Macedo - e eu gostaria de fazer parte do seu grupo religioso; me interesso muito por seus rituais.

A velha não mexeu uma linha do rosto.

- Aqui não é admitida a entrada de estranhos. Para entrar você precisa ser convidado. Retire-se.

Macedo não iria se dar por vencido - detetives têm a persistência em comum com os vendedores. Velhas gostam de sorrisos jovens. Macedo resolveu exibir o seu:

- Acontece que tenho uma morte na família para vingar. Meu cunhado foi alvejado a tiros por um vagabundo que a polícia nunca vai conseguir localizar. Consta que ele (o assassino) fugiu para o Paraguai. Só um feitiço poderá me vingar - dito isto começou a contar notas na carteira, só então dando-se de que o assunto era muito sério para sorrir. Tarde demais.

A velha mudou um pouco. Não pareceu importar-se com a frivolidade de Macedo. Estava mais interessada em outra coisa:

- Um feitiço deste tipo custa caro. Requer três galinhas, dois bodes e cinqüenta e quatro charutos, mais treze garrafas de cana.

Não haveria problema algum, garantiu Macedo com um pouco mais de seriedade - todos os custos seriam pouco para vingar a morte de seu cunhado, querido como um irmão. Prometeu voltar na próxima semana, já com algum recurso pecuniário para dar início aos rituais.

Então Macedo está no escritório, pedindo um adiantamento de quinhentos barões para que possa continuar freqüentando o terreiro sem despertar suspeitas, apurando logo algo das atividades de sua mulher por lá.

José Felipe de pronto saca um cheque preenchendo o valor requerido pelo detetive, para sair em seguida num cumprimento cordial - não sem antes recomendar que lhe informasse imediatamente se alguma descoberta fosse feita.

O sol começara a adquirir tonalidades sanguíneas.

* * *

Já é noite e Macedo ainda medita no escritório. Curioso, não sente-se bem ludibriando o velho. É bom extorquir dinheiro de suspeitos que não desejam passar uma noite no frio xadrez do DENARC, traficantes reincidentes que pegariam décadas de reclusão se fossem a julgamento, profissionais liberais surpreendidos com alguma substância ilícita de seu consumo. Mas aquele velho era idôneo, nada tinha feito para ele. Sequer conseguira vislumbrar a mulher nas ruas fica inventando toda uma trama, usando a habilidade para mentir que anos e anos de polícia lhe proporcionaram. Só para arrancar o ouro do homem. Também, era seu primeiro caso em tantos meses, e o dinheiro da polícia não comprava mais nem seus cigarros "Dromedário", que fuma na base de duas a três carteiras por dia, (isso sem contar os charutos). É, sem dúvida nenhuma, precisava do dinheiro; ao velho não faria a menor falta.

Sai à rua um pouco mais leve. Quase sorri.

* * *

Acende um Dromedário ao ganhar a calçada.

Mais ou menos na metade do cigarro, avista uma mulher que muito se parece com o retrato que o velho corno lhe dera. Dá uma conferida na foto, só para ter certeza. Positvo: trata-se do elemento. Segue-a por entre os transeuntes da Augusta, que ainda ruminam as horas de trabalho. Só então repara como Cláudia é dona de um corpo generoso, pernas e quadris fortes, mas atraentes, uma nuca cheia de pelugens, um rosto deveras bem feito. Senta-se num café, como que esperando por alguém.

Macedo esgota meia carteira de Dromedário espreitando o companheiro de Cláudia, que, parece, não vai mesmo chegar. Resolve aproximar-se:

- Esta cadeira está tomada?

- Estou esperando um amigo.

- Eu sei, estava te observando.

Iniciam uma conversa trivial. Não, Cláudia não acredita que seu companheiro possa ainda aparecer; aliás, está pouco ligando para isso. Poderiam tomar alguma coisa.

E assim, renasce o desejo em Macedo.

Desde os quinze anos que não se interessa por nenhuma representante do sexo oposto, desde que... ah, deixem pra lá. Macedo definitivamente não quer recordações tristes. Talvez, numa noite, depois de algumas doses de conhaque ele resolva aderir à nostalgia dos homens atolados na infância. Por ora, o desejo.

O desejo ainda sobrevive a duas garrafas de chardonnay. Quem sabe ainda mais forte. Cogitando qual seria a maneira mais polida de deixar claro que apreciaria e muito copular com ela, ouve:

- Tenho um apartamentinho aqui perto do centro, Henry - Macedo sempre a mentir o nome -, onde talvez possamos ficar por algumas horas. Depois, tenho de voltar para casa, meu marido está esperando.

O apartamento possui um nome bastante frugal: Cantinho do amor.

Nenhuma janela para atiçar a curiosidade dos vizinhos, é realmente perfeito para o que se propõe. Naquele estado de languidez pós coito que os franceses chamam de petite mort, resolve revelar:

- Teu marido me contratou pra te investigar, suspeita que o trais... - gargalham, descontrolados por aproximadamente cinco minutos - ... tenho que inventar alguma coisa para continuar arrancando a grana do velho.

Cláudia, bem mais nova que Felipe, havia francamente se casado com ele por interesse. Propõe matá-lo e dividir o que ela herdar.

- Ah, benzinho, não queria matar José Felipe. Ele parece um sujeito decente, que nunca fez mal a ninguém. Sentiria um peso muito grande. Já matei de pancada muito vagabundo, mas teu marido eu não poderia. Não mesmo.

Então fica decidido que simplesmente roubarão todo seu dinheiro.

* * *

Macedo tem um pouco de dificuldade em encarar Felipe, ao encontrarem-se novamente no escritório. Não obstante, é tão cordial que chega ao ponto de despertar leves e fugazes suspeitas no homem. Dá continuidade à estória:

Macedo voltou ao terreiro havia dois dias. Levara os quinhentos contos que Felipe lhe dera, mas estes ainda não se mostraram suficientes. Do seu bolso tirara outros trinta, que acertariam noutra ocasião.

Não, de jeito nenhum: Felipe faz questão de assinar um cheque de cem, trinta pela despesa, setenta pelo empenho. Macedo aceita, nó na garganta.

Fizeram os despachos entre muita gritaria, beberragem e sexo grupal. Macedo observava tudo muito atento, esperando vislumbrar Cláudia a qualquer instante. Mas a mulher não apareceu. Macedo só poderia concluir que ela procurara o terreiro a fim mesmo somente de buscar alguma ajuda do além. Vingancinha, premonição do futuro talvez.

José Felipe agradece com lágrimas nos olhos. Que peso Macedo lhe tirara da idéia! Já imaginava a mulher fodendo selvagemente com um trio de negros ultradotados, bebendo sangue de bode e matando galinhas a dente! Sai do escritório saltitando.

* * *

No terceiro encontro, Cláudia declara que já é hora de botar em prática o plano. Simples: simulação de assalto. Ela se encarregaria de subornar a segurança, ele entraria sozinho, mascarado, portando sua arma de detetive. Fingindo desesperar-se, Cláudia denunciaria a localização do cofre, onde se coletaria todos os dólares e jóias que pudessem carregar, dando imediatamente no pé.

Combinaram às nove horas do dia seguinte.

* * *

Macedo se prepara tomando café num boteco da redondeza. Suas mãos quase não aparecem, trêmulas. É com a decisão dos soldados rasos que se aproxima da mansão de José Felipe.

Arma escondida num coldre sob o terno, tem o portão aberto por um taciturno segurança, que provavelmente já conhece sua descrição dada por Cláudia. A imensa distância que separa a entrada da casa é vencida num brumoso espaço de tempo em que coisas sem explicação passam pela cabeça do detetive. Veste a máscara.

Entrando na casa, dirige-se reto à sala, onde estão o senhor e a senhora que o fariam rico. José Felipe degusta um scotch, contemplando sua mulher que folheia despreocupada uma revista. Cláudia, não sem antes sorrir cúmplice, grita alto somente o bastante para apavorar o marido. Este permanece estático, indicador ainda mergulhado no copo de uísque. Uma inércia invade também o detetive, que não sabe o que dizer, não tem a menor idéia do que faz ali.

Olhos mascarados nos olhos do velho.

- Meu Deus, um assaltante! O cofre está ali, pode levar o que quiser, mas, pelo amor de Deus, não nos machuque!

Macedo permanece imóvel, assim como José Felipe. Percebendo que teria de agir, e rápido, Cláudia também aponta uma arma que posicionara debaixo da poltrona especialmente para a ocasião. Dirigindo-se ao marido, ataca:

- Este é o teu fim, seu velho broxa, tu vai aprender agora a me negar fogo obrigando a te chifrar com tudo que é bofe por aí!

Macedo sente o cérebro tremer.

NÃÃÃO!

Cláudia cai fulminada por quatro tiros da automática do detetive, que deixa a arma fumegar por alguns instantes. José Felipe atira-se na moribunda, a chorar como criança sobre o brinquedo arruinado. Macedo corre arrancando a máscara, em direção ao portal onde tem a passagem cedida pelos seguranças.

Um choro convulso explode somente ao dobrar a terceira esquina.

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(putaria.)