(putaria.)
#5 ; edição cajadada

 

barracão azul

leonardo felipe

>>@&*#$&#*$&@<<

O calor da tarde começava a se dissipar. Na feira, além dos quitandeiros e mendigos de costume, restava apenas uma meia dúzia de donas de casa escolhendo ingredientes para a janta. Apesar de ser o fim da longa jornada de trabalho, esse era o momento que João mais detestava do dia. Detestava porque era a hora de recolher os restos não vendidos de verdura, os peixes recusados pelos clientes e tudo aquilo que não fora aceito pelos compradores por estar azedo, fedido ou mirrado. João trabalhava de segunda à sábado, das cinco da manhã às seis da tarde, levantando sacas de laranja de umbigo, puxando caixas de galinhas d`Angola e arrastando pernis de porco. O fim do dia o deprimia porque cheirava mal. As ruas com sua aparência encardida, as moscas e as baratas, o bolor e as frutas pisoteadas - tudo isso lhe dava uma sensação repulsiva de vazio, como se ele, João, fosse também um resto da feira, um pedaço de carne passada, que ninguém quer levar embora. A única coisa que o motivava a continuar trabalhando era a idéia de que dali há alguns minutos simplesmente pararia de carregar todos aqueles fardos malcheirosos e trocaria a sujeira das caixas e sacos por um estimulante trago com os amigos.

Como era sexta, dia de gafieira, decidiu dar uma passadinha em casa antes do arrasta-pé para colocar desodorante e vestir uma camisa limpa. João morava num barracão sem número, bem no topo do Morro da Babilônia. Era o pior barraco da favela. As paredes de cor azul-desbotado, feitas de sobras de compensado e papelão, mal suportavam o vento marítimo que soprava do Leste, e o teto, de latão vagabundo, era salpicado de furos, através dos quais entrava a chuva nas noites úmidas de agosto. Além disso, o barracão só se sustentava de pé graças a um pedaço de pau que o escorava pelo flanco esquerdo. No interior, parecia ainda menor do que por fora. Havia espaço apenas para o minúsculo colchão ensebado, colado ao penico sujo e ao caixote de feira que servia de mesa para as refeições diárias de pão e farinha. Mas João não se queixava, afinal de contas, o barraco era um presente que ganhara quando chegou do Maranhão. No seu primeiro dia no Rio de Janeiro, enquanto subia o morro à procura de uma tia para lhe pedir morada, ouviu falar do barracão azul. O antigo dono havia recém falecido, crivado de balas numa briga, e o barracão estava disponível. Ninguém o reclamara. Tremenda sorte.

João trocou de camisa e desceu o morro. Não pelo mesmo lado que subira, mas por detrás, onde iria desembocar no bar do Vidigal, o 20 de Novembro, bem na frente da Lagoa Rodrigo de Freitas. Chegou cedo, a gafieira ainda estava para esquentar. Apenas algumas mulatas e o próprio Vidigal, atrás do balcão, servindo caninha 51 e ovo em conserva para dois fregueses. João pediu a primeira, a segunda, a terceira e tirou uma puta para dançar (agradava às mulheres, que na hora da dança se deixavam conduzir pelos braços fortes de negro acostumado a levantar peso). Depois da quinta puta e da décima cachaça ficou completamente bêbado. Ora cantava melodias desconexas, ora esbravejava destemperos contra a clientela. Estava fora de si, num estado de euforia que, na realidade, disfarçava a enorme angústia que sentia. Alguma coisa o incomodava.

Sim, era aquele cheiro, o fedor de fim de feira que ainda impregnava seu corpo. “Claro, não tomei banho!”- a lembrança de que não havia água encanada no barraco azul o atingiu de súbito, embriagando-o como mais uma dose de aguardente - só o desodorante e a camisa nova não bastavam, precisava se lavar. Sem dizer palavra, saiu do bar e atravessou a avenida em direção à lagoa. As luzes dos faróis somadas ao efeito do álcool embotavam seus olhos. Esfregou as mãos no rosto antes de tirar a roupa e os sapatos e se atirar na lagoa.

O choque com a água despertou-o da bebedeira. Mergulhou na escuridão gelada, enquanto ouvia vagamente a música que vinha do 20 de Novembro. Foi quando sentiu o odor fétido de água parada da lagoa e se deu conta de que se banhava na imundície. Um verdadeiro rio de mijo e merda que contaminava sua pele, penetrava sua boca e suas narinas e o arrastava para o esgoto. João, numa mistura de horror e asco, se pôs a dar braçadas, pernadas e cabeçadas, tentando sair de dentro daquele caldo fedorento. Porém, o esforço convulsivo e desesperado só serviu para lhe cansar. Estava exausto, não podia mais suportar. Desistiu da luta e se deixou sucumbir pela sujeira líquida.

No dia seguinte, ao nascer do Sol, quando os carregadores da feira iniciavam seu trabalho, o corpo de João foi encontrado na beira da lagoa. Estava deitado de barriga para baixo, os braços abertos em cruz e o rosto afundado na lama. Ratazanas passeavam ao redor. Um moleque do Morro do Babilônia observava com olhos curiosos o resgate do cadáver. Ao reconhecer João, se tocou em direção à favela. Ia contar para todo mundo a notícia. Conforme subia as ladeiras estreitas do morro, gritava para o povo:

— O barracão azul tá vago, o barracão azul tá vago!

>>@&*#$&#*$&@<<

<
*
>

(putaria.)