(putaria.)
#5 ; edição cajadada

 

desvios

julio lemos

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1

Ele olhava pro espaço vazio que ficara onde Márcia esteve, usando óculos e aquela expressão simples e generosa no olhar. Olhando pro infinito, cavou os dedos num montinho de fumo que logo ia inserindo no cachimbo. Cortou-se o necessário e estendeu os braços na direção do interruptor. A luz estava apagada em dois segundos.

No dia seguinte, viriam Márcia e padre Daimonides com o dinheiro das prestações. Fixando objetos desse lado e retomando o foco dos dois vultos que entraram, Teo tentou iniciar o diálogo.

"Deixem ali. Padre, por favor, o café tá ali na cozinha", indicou Teo com paciência e resignação. Sempre alguém tem de usar esses abstratos.

"Tu não acredita, Teolito. Ontem eu escorreguei numa poça embaixo da sua samambaia", disse Márcia, com paciência e resignação.

"Grandes merda", sussurrou Daimonides. "Tenho aqui algo que tu vai se arrupiar".

Não era grande coisa, pensou Teo. Estava tudo claro agora. Aqueles dias felizes virão. Sabe quando estamos tão tristes que nada pode ficar pior? Todo mundo vinha deixando Teo na pior. E era só conspiração.

Passaram-se dias e o mundo estava intacto. Libélulas entravam dentro de casa, sobrevoavam as cinzas do charuto.

"Porra, como tu consegue beber essa coisa?", dirigiu-se a Daimonides com a voz afiada. "Isso é álcool puro. Sabe que sempre fui contra álcool, padre".

Desta vez ninguém abusou de adjetivos. Márcia estivera o dia todo fora, coçando uma figura roxa na perna. Aquilo parecia um chifre, não? E ele achava Márcia a criatura mais sem atrativos que tinha visto. Seria a última que serviria pra uma punheta. Não acha, reverendo?

"Acho que você devia aprender um pouco sobre o evangelho. Junto com o dinheiro eu te trouxe uma bíblia. Meu presente de crisma. Que acha?"

"Ih.... tá velha pra caralho. Acha que eu vou fumar isso?", indagou Teo, já sem paciência e olhando a mancha na perna esquerda da Márcia. Mão esquerda.

"E as quitações?", indagou Teodoro.

"Estou de saco cheio. Na Fazenda Pública só tem malandro".

"Padreco, padreco. Você sabe que malandragem é o que há de melhor a se fazer".

"Eu sei, filho. Agora deixe de moralismo e me passa um desses".

"Desde quando padre fuma navalha?"

"Você e suas obsessões com...", disse Daimonides deixando o gás escapar e pensando o que fazer com aquele condenado.

"Seguinte... A Márcia anda livre?"

"Sim. Ela ainda te ama, além disso. Quero casar vocês. Lógico que casamento entre parentes é foda, mas oras, porra, putz... Qual o seu problema com ela? Vai fechando esse zíper. Respeito. Qual seu problema com ela?"

Teo riu sem dó. Amorteceu a queda com um estouro no sofá. Ambos riram como se uma modelo fotográfica estivesse entre eles. HAHAHAHA. Estouraram de rir.

"Uma coisa, Teozito. Acho o amor uma coisa bonita; cultivem essas coisas. Vocês não têm nada a perder. Eu que fui tolo quando..."

Riram mais uma vez, desta vez em adagio. Agora era caso fortuito. Márcia entrava.

"Ei ei ei... Se não é a Marileide. Chegou mais cedo hoje", diz agora Teo mastigando metade de um pão francês. "Limpe essa sujeira, as libélulas não me deixam em paz. Os mosquitos, então..."

Não era a Márcia, era a empregada. Daimonides ia fazendo círculos com as mãos: estava benzendo a sala. Os pássaros eram animais malditos. Só bastavam os corvos. Os corvos, estes não comportavam malandragem.

"Aqui ia bem um crucifixo. Melhor, uma cruz com um cristo bem grande, alegre".

Riram pra caralho de novo. Márcia não entendeu e pôs-se a falar sozinha.

"Ai meu deus. Vocês. Não entendo mesmo. Que diabos é isso?".

"Ai Márcia, Márcia. Seu nome é muito feio. É nome de gente que usa óculos".

"Eu uso óculos, oras".

"Oh, que amor. Você tá muito bonitinha, você".

"Ai, Teolito. Olhe pras suas sobrancelhas. São lindas. Como as do Júlio, elas são grossas, você é branquinho, sabe, é meigo demais".

"Deixe dessas, o padre não gosta. Respeito enquanto ele não está. Quando estiver, solte o verbo, ele quer que a gente..."

Os olhos de Márcia brilharam. Na visão de Teo, ela teria constatado mesmo que os pássaros são animais malditos. Correram os dois e fecharam as janelas da esquerda. Era duro. Ela estava dura. Ele não.

"Tipo, eu queria que você me acompanhasse, vou agora lá pra casa, preciso pegar seu dinheiro".

Aí ela falava o que me interessava. Quem era Júlio?

"Quem diabolos é Júlio?"

"Um cara aí. Ele é escritor. Escreve pequenas histórias."

A conversa ficou tensa. Márcia enrubesceu de desejos, fechava as pernas e sentia ardor nos bicos e a lã arranhava. Você nunca teve seios pra saber disso. Apropriação de discurso.

Vários dias se passaram, apressados. A amizade entre os dois era magnífica. Daimonides aplaudia com resignação.

Enquanto isso, os dedos marcados de vários cortes de Teodoro rompiam o crepúsculo com um estalo. Era simples explicar: ao acordar, ele fixava os olhos na janela, buscando os raios marginais do sol, que nesta época do ano eram frágeis e cristalinos. A vista ia ficando embaçada quando ele olhava o mato que ficava no quintal de trás. A família que se mudara pra lá era usurária e barulhenta. Não sabiam onde enfiar dinheiro.

"Oras, enfiem no rabo deles. Não quero saber de dinheiro".

"Tem algum provérbio pra hoje, Daimo?", mandou Márcia interrompendo o silêncio, falando e cuspindo um tanto quase imperceptível.

"Sim, filha. Sim, minha filha". Saíram sons estranhos porque decerto essa era a primeira emissão de som que velho fazia hoje.

Teodoro não estava lá. Foi tirar satisfações com o vizinho. Os dois ouviram berros lá do outro lado. Dois estampidos. Mais dois berros e voltou Teo sorrindo, como se tivesse abatido alguns coelhos pro jantar.

"São gente legal. Pirei na deles".

"Dava pra ver, pelo bafafá", comenta o padre.

"Mas diz, algum provérbio pra hoje?", diz Márcia, desconversando.

"Sim, filha. Já digo. Pegue café pra mim".

Era um sacrilégio pegar café. Os dias andavam difíceis. Andava difícil pagar as contas só com o dinheiro que eles traziam. Precisava matar mais de um, e isso ia fazê-lo arrancar as tripas de tanto esforço. Porque aqueles dois não revelavam o problema logo? O que eu ia fazer? Eu não podia agir mal. Violência não é comigo, prefiro a fé e a resignação.

Que eu ia fazer com a bíblia?, pensava Teodoro enquanto enrolava mais um. Soltava o gás perto do sofá e esperava que Daimonides fosse rir. Dessa vez, quem riu foi Marileide.

"Ele diz que não tem graça, Marileide", disse Teodoro.

"Fala o provérbio logo senão te esgano, seu velhote", demandava Márcia, ainda com sua paciência e docilidade características.

"Ok", respondia Daimonides, seco e se preparando pra dizer algo em seguida.

"Ah, já sei", disse Teodoro com um sorriso matreiro.

"Diz logo então, Teo".

2

Enquanto Mané saía de casa, ouvia alguns pássaros que julgava só escutar tarde da noite. Este era um negro bom: daqueles que faziam piadinhas de negro só de sacanagem. Era alto, nariz largo como o diabo. Do lado esquerdo do corpo, balançando, trazia um copo de conhaque.

E Márcia não sabia o que fazer. Não conseguia atrair a atenção dos machos. Pra isso, se metia todo os dias na igreja e punha as mãos juntas.

"O que vai fazer comigo, agora?", perguntava a Teodoro.

"Não sei, oras. O que faria?"

"Pegue assim", mostrando a Teodoro como pegar numa mulher.

"Por deus, não seja idiota, mulher. Você é minha tia. Se fosse prima, vá lá".

As horas passaram, os líquidos desapareciam dos copos. Havia um licor rosado que caía da boca dela e descia até o chão. Logo todo o tapete estava manchado, Teodoro sem saber o que fazer. Não sabia repelir a atenção das fêmeas.

"Você é muito feia", disse ele rindo de si para si.

"Ai... Você me dizendo isso me corta o coração".

"Pois. Que me vale seu coração? Mulher acha que é o centro do mundo".

Veio o silêncio. Lágrimas abundantes brotaram e vazaram.

Quando o dia ficou jocoso, Teodoro foi até o bar e encontrou ao lado de um saco de balas o padre Daimonides. Já entrou rindo e planejando algo faceiro. Os outros negros cessaram a conversa pra observar como iam os feitos do rapaz.

"Bando de escravos da bebida, vocês!", disse ao entrar.

Só não riu o dono do boteco, porque não estava.

"Ei Teo, vamos sentando".

Lá pela meia-noite, só restaram três: Teodoro, Daimonides e um sujeito que não restara nem o nome.

"Você, velhinho. Já enxugou a lata, é?", começou o padre. "Hein? Algum problema? Tou falando com você".

"Ele não fala nada, poxa", observou Teodoro.

"Você tem que mudar de vida", continuou Daimonides. "Algum dia já pensou sobre a vida que leva? Hein? Se enchendo de álcool, passando o dia bêbado assim. Isso não é vida. Quero que você passe a freqüentar minha casa. Te dou comida e vou te ensinar umas coisas".

"Tá certo, amizade. Sabe, isso aqui é povisório. É um assurdo o que eu vejo. Olha aqui. Tenho carteira de trabalho assnada. Veja, pode ler". Olhava para os lados com lentidão, sorvia mais do copo. Não sabia o que era um partitivo.

"Ei cara, acho que você não..."

"Fique na sua, Teo. Sei o que tou fazendo".

Os dois riram. O homem achou que fora sarcasmo.

"Tá ok. Se precisar da minha ajuda, tamos aí".

"Você com essas expressões".

A conversa foi até as últimas horas da madrugada. Daimonides pagou trocentas cervejas pro sujeito. O bêbado afirmava se chamar Simão.

"Você está muito embriagado", disse o padre. "Venha comigo, te levo pra minha casa".

Simão respondeu qualquer coisa de incompreensível.

Voltemos ao boteco. Quando Teodoro vinha entrando, reparou na presença do padre e de um moreno alto que conversava com ele. Houve silêncio imediato e convidaram Teo a entrar, num tom de conspiração.

Perceberam o acento de miséria no rosto de Teodoro. A miséria também invadiu o ambiente.

Teodoro já sentia o assalto do absurdo, do lapso de razão que fica entre a alegria forjada no ambiente e o estado inerte e vazio das coisas. As coisas: diz-se o conjunto de paredes do recinto, das barbas por fazer dos pedreiros. Por fim voltou ao timbre enganoso de Daimonides, e logo foi dizendo:

"Onde está o seu Cristóvão?"

"Ele deixou o filho cuidando", respondeu alguém.

"Esse moleque? E se alguém quiser dar o cano nele, o que esse pulha vai fazer?"

"Acalme-se, Teo", disse o padre. "Alguém falou em brinde?"

"Andam se divertindo às minhas costas".

"Respeito, meu amigo. Olha quem entra aí, se não é o...", disse alguém.

"É o Simão", disse outro.

"Que bicho deu? Hein?"

Outras frases curtas acabaram com a festa. Atravessaram a noite embriagando o pobre Simão.

Num outro dia, antes ou depois disso, estavam Márcia e Mané na frente da armação de um circo. O suor dos dois desciam sem restrição. Agora ninguém entendia porque fazia calor.

O fato é que desconheciam o que se passava com o outro. O aspecto exterior só podia dizer sobre guerras, falta de escrúpulos. Mané nunca havia ouvido essa palavra. Sua camisa estava manchada de graxa e sentia zumbidos no ouvido.

"Que barulheira é essa?", disse Mané.

"Pois é. Estou indo pra casa agora".

"Não se vai não, senhora, que a senhora podia conversar um pouco comigo, não é?" "Sou casada não".

"Eu sei, muito bem sei. Também..."

"Vai dizer que sou feia? Que diabos?"

"Não, pelo contrário, menina. Tem uma bela duma...", ameaçou Mané, rindo.

"Vou tirar esses óculos. Fico mais sexy?"

"Mais o que?"

"Bem, estou indo. Passe bem"

E retiraram-se os dois, com pressa. Na verdade o negro pôs-se a pensar e ficou ali mesmo, no sol, deixando o suor descer mais.

Certa vez, antes disso tudo, encontravam-se o padre Daimonides e Teodoro numa pequena casa abandonada. O vento levantava as telhas com suavidade.

Iam longe os pensamentos de Teodoro; pareciam negar tudo. Estava confuso: segundo o padre, era sinal de santidade.

Já Daimomides estava seguro de seus pensamentos. O miserável vinha aprendendo cada lição de virtude que lhe era ministrada com perfeição. Eram dias alegres; a chuva chegava e ia embora sem perturbação.

O assunto com Márcia já era passado. A bondade de Teodoro só vinha a confirmar o que sentia por ela. Ficaram em silêncio por muito tempo.

A voz de Daimonides irrompeu como que desperta de um medo antigo:

"É hora da gente por um fim naquele homem. Já não pode ficar na minha casa".

"Pra isso eu tou aqui, padre."

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